Unicórnios
Vilém Flusser
publicado no Jornal Folha de São Paulo de 24 de março de
1972
Embora não sejam, a rigor, animais domésticos, são, no
entanto, extremamente úteis ao homem. A sua utilidade varia com o tempo. Na
antigüidade o seu chifre servia, apropriadamente moído, como remédio contra
todos os venenos. Na Idade Média o unicórnio servia como atributo da
virgindade, portanto tinha utilidade pública incontestável. No romantismo e
pós-romantismo foi amplamente utilizado como tema de poesias, (embora a palavra
"unicórnio" não tenha muitas rimas nas línguas latinas). E atualmente
é indispensável para livros de lógica e teoria do conhecimento. Com efeito:
tais livros não poderiam existir, se o unicórnio não existisse, e nem, se
existisse. Para prová-lo, tomemos as seguintes sentenças:
1. A maçã é verde.
2. O sangue é verde.
3. Deus é verde.
4. A liberdade é verde.
5. O presente rei da França é verde.
6. O unicórnio é verde.
A primeira sentença pode ou não ser verdadeira. A segunda
é falsa. Ambas têm sentido. As demais sentenças não têm sentido. Pois isto é
fácil dizer-se, é fácil verificar-se, já que, ao dizermos tais sentenças,
estamos segurando a risada. Por não terem sentidos tais sentenças, são
ridículas e divertidas. Difícil é dizer por que tais sentenças não têm sentido,
porque os seus sujeitos, a saber: Deus, a liberdade, o presente rei da França e
o unicórnio, não existem. Mas não podemos dizê-lo. Não se pode dizer que Deus
não existe, porque seria primeiro necessário definir o termo "Deus".
Coisa impossível. Não se pode dizer que a liberdade não existe, porque a sua
presença ou ausência são nitidamente constatáveis. A sentença "a liberdade
é verde" não tem sentido, embora a liberdade exista. Não se pode dizer que
o presente rei da França não existe, sem dizer-se, também, quando se está
falando. Por exemplo: no século 17 existia um rei da França que estava
presente, e a sentença era então provavelmente falsa, e tinha portanto sentido.
Mas, quanto ao unicórnio, todos estão de acordo que não existe. Portanto
podemos dizer claramente porque a sentença "o unicórnio é verde" não
tem sentido. O único caso nítido entre os exemplos fornecidos. Não fosse o unicórnio,
e os livros de lógica e teoria de conhecimento não teriam sentido. Não teriam
sentido, porque não poderiam exemplificar o que quer dizer: "não ter
sentido". Isto seria uma pena, especialmente para professores de lógica e
teoria do conhecimento. Mas, felizmente, há unicórnio, e Sócrates é seu fiel
companheiro. Assim: Sócrates é mortal, e o unicórnio é verde. Viva a cultura.
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