A câmera
do aparelho telefônico está criteriosamente posicionada para colocar em tela
seu rosto, a parte superior do tronco e, principalmente, os gestos contundentes
das mãos, com unhas cuidadosamente pintadas. E para parecer um pouco
negligente, como se estivesse colocada meio ao acaso. Ela, a moça que executará
a performance, conhece bem o campo coberto pela câmera, e cuidadosamente se move
de modo a tirar proveito do enquadramento, com algumas saídas estratégicas,
para entradas veementes em seguida. Antes de iniciar o espetáculo, os
organizadores, homens, preparam microfone, fazem comentários com ela, que responde
sempre afável e com a expressão de segurança, de quem sabe o que está fazendo. O
sorriso breve sugere reconhecimento do terreno bem como certeza dos modos como
moverá as peças para dominar a cena.
Ela calculou
todos os passos para causar impacto. Polêmica é o seu principal
produto à venda. Performance é sua estratégia. Por isso escolheu, para usar como bandeira, um assunto
capaz de mobilizar passionalidades. Combater o feminismo pode ser uma boa pedida. Não importa o teor
do seu discurso, tampouco importa se articula de modo coerente os conceitos que
anuncia. Não importa se mente, ou se de fato leu todas as autoras cujos nomes
brada, como se preparasse a próxima lista de bruxas que devessem ser condenadas
à fogueira. Nada disso importa. Por isso mesmo, não adianta contestar seu
discurso, nem contra-argumentar, nem convocar à razão. O que está em pauta, de fato, é o seu cachê,
os cachês que vão sendo pagos por organizadores de eventos para públicos
marcadamente masculinos (também não importa quantas mulheres deles façam
parte). O valor do cachê é diretamente proporcional à sua capacidade de incitação à reação.
Por isso
são vãos os protestos das feministas. Ou melhor: não, não são vãos, eles fazem
parte dos cálculos da mocinha, e integram as estratégias de sua performance. Ela
precisa deles, e eles são infalíveis: estão sempre lá, ou à volta. Ou mesmo
estão na audiência difusa que a acompanha por meio das imagens geradas pela
câmera, aquela que foi criteriosamente posicionada para transmitir sua
performance online, ao vivo, e depois manter o vídeo disponível em plataformas digitais, para seus
admiradores e seguidores, tanto quanto para seus adversários. Isso a alimenta. Isso
alimenta sua performance. Isso alimenta seu cachê.
Seu rosto,
seu gesto, sua expressão lembram-me as feições de outra mulher que marca a
história do cinema: a robô que ocupou o lugar de Maria, no filme Metrópolis, de
Fritz Lang. Aos que não viram o filme, faço um briefing. Metrópolis é uma cidade dividida em camadas. Cada camada é ocupada por uma categoria, posicionada de acordo com seu poder, capital econômico e importância na estrutura social. A elite
habita a superfície, em palácios suntuosos; as máquinas, que são o meio de
produção de riquezas, ocupam o primeiro subsolo; os operários, que operam as
máquinas em jornadas extenuantes, vivem abaixo, ainda, num segundo subsolo, e nunca, mas nunca
mesmo, podem emergir à superfície. Entre eles, Maria é uma espécie de
revolucionária pacífica, com tintas messiânicas. Ela se esforça por agregar os operários, e defende que, por meio do amor, poderão encontrar
um meio de sair daquela situação desumana e insustentável. Promete, ainda, que esse dia está por chegar. O filho do
empresário principal proprietário da cidade, por acidente, acaba por conhecê-la.
Quando sai à sua busca, acaba tomando conhecimento dos subsolos da cidade, e
das condições miseráveis dos operários. Finalmente, a vê numa espécie de catacumba
ainda mais profunda, numa de suas pregações aos demais operários. Apaixonam-se um pelo outro.
Na superfície,
seu pai também é informado sobre o que se passa. Então reúne-se com o
cientista, com quem arquiteta um plano diabólico: programar um robô com as
mesmas feições de Maria, para ocupar o seu lugar, enquanto ela é mantida sequestrada.
A robô-Maria é sensual, sedutora, participa de festas em boites para o deleite
dos homens. E, quando desce à catacumba, ao encontro dos operários, no lugar da
verdadeira Maria, os incita à rebelião, ao ódio. A ideia é que os operários reajam com violência, para justificar à elite combatê-los também com violência. E eles correspondem
ao chamado. Contudo, a reação em massa escapa ao controle
de todos. A horda não só destrói as máquinas como também coloca em risco a segurança da população,
inclusive das crianças, filhos dos operários. Quando estes se dão conta,
voltam-se contra a robô. Perseguem-na, e a queimam na fogueira.
Maria, libertada, consegue, finalmente, reunir-se à sua gente, e ao novo amor. Mais que isso, conquista o intento de mediar as negociações de um novo tempo. Talvez o filme se encaminhe para um final excessivamente otimista, um pouco piegas até. Talvez àquele tempo fosse necessário uma dose extra de otimismo, dadas as circunstâncias tão adversas vividas na Alemanha da década de 1920. Aos sobressaltos, entre polarizações e escapando a gestos de ódio também transcorremos os dias de hoje. Não nos faria mal algumas doses extras de otimismo e de esperança, sem perder o sentido crítico do mundo vivido.
Maria, libertada, consegue, finalmente, reunir-se à sua gente, e ao novo amor. Mais que isso, conquista o intento de mediar as negociações de um novo tempo. Talvez o filme se encaminhe para um final excessivamente otimista, um pouco piegas até. Talvez àquele tempo fosse necessário uma dose extra de otimismo, dadas as circunstâncias tão adversas vividas na Alemanha da década de 1920. Aos sobressaltos, entre polarizações e escapando a gestos de ódio também transcorremos os dias de hoje. Não nos faria mal algumas doses extras de otimismo e de esperança, sem perder o sentido crítico do mundo vivido.
A mocinha que se diz antifeminista prossegue em sua atuação diante da câmera e da platéia que a aplaude. O lugar onde está não se assemelha à catacumba onde Maria-robô incitou os operários. Mas a mocinha que se diz antifeminista está no auditório de uma universidade, onde, em tese, transitam os homens (sobretudo homens) de ciência. Ela, Maria-robô, foi devidamente programada por dois homens: um da ciência (frequentaria também universidades?), outro do capital (que toma as decisões; por exemplo, pode decidir pagar por uma palestra da mocinha que se diz antifeminista...). A performance da mocinha, seu olhar, seu discurso têm muitas afinidades com os da Maria-Robô. Estremeço pensando no fim dado à antagonista criada por Fritz Lang. Espero,
sinceramente, que a mocinha não corra o risco de ter qualquer desfecho trágico assemelhado àquele. Mas, ao mesmo tempo, espero que a horda por ela incitada não reaja de modo a
destruir conquistas frágeis que têm sido construídas a duras penas, amealhadas no decurso do tempo.
O risco está sempre ali, à frente, iminente.
O risco está sempre ali, à frente, iminente.
Para ver
Metrópolis: aqui
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