sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Festa de anos


Para César Guinda








 




Nunca consegui entender o que motiva as pessoas a parabenizarem os aniversariantes. Por que parabéns? O que terão feito os aniversariantes que justifique serem parabenizados? Será por terem conseguido estar vivos até ali? Ou por terem sobrevivido a mais uma rodada completa da Terra em torno ao Sol?

A contagem do tempo também é coisa que me intriga, dada sua arbitrariedade, e a precariedade de sustentação, embora seja elemento central na organização da civilização de matriz ocidental, europeia, atualmente estendida aos quatro (ou quantos sejam) cantos do pequeno planeta em que vivemos.

Pois bem, é bem assim que cumpri 56 anos. Seja lá o que isso signifique. Já há algum tempo tenho vivido esse momento de marcação do tempo de modos distintos, refratários aos modos digamos que considerados usuais de celebração. Tem sido divertido. Quando não, tem propiciado pensar essas e outras questões sobre a existência.

Neste ano, meu aniversário ocorreu numa quarta-feira, dia em que, neste semestre, leciono pela manhã e pela tarde. No turno vespertino, ministro uma disciplina intitulada Oficina dos Fios, na qual experimentamos compartilhar aprendizagens que envolvem bordar, tecer, fazer crochê, há quem faça tricô, macramê. Trata-se, afinal, de uma oficina.

Foi pensando nela que meu tão querido amigo César Lignelli, professor do curso de Artes Cênicas da UnB, fez uma proposta no mínimo instigante, motivadora. Ele vem construindo uma performance/espetáculo/celebração/festa/sabe-se-lá-o-quê intitulada DeBanda. Nela, ele veste, literalmente, um instrumento que vem sendo inventado há não-sei-quanto-tempo, e que nunca est(ar)á pronto. Atualmente, pesa uns 30kg. Instalado às costas, tem fios ligados aos pés, joelhos, dedos das mãos, cotovelos. Assim, diferentes instrumentos sonoros são acionados conforme sua movimentação. Ele opera, ainda, duas sanfonas, conforme a cena, além de uma sirene.

Mas não se trata de mera execução do instrumento, o que já seria uma tarefa exaustiva. Ele conta uma história sem texto, para a qual constrói personagens distintos, que assumem posições antagônicas entre si, chegando a lutar. Há paixão, há conflito, há tragédia, mas também pode haver recomeço. Mais que isso, ele estabelece comunicação contínua com o público presente, dialoga, divertem-se. É um trabalho de Sísifo... porquanto louco, interminável, exaustivo. Mas, talvez por isso mesmo, apaixonante, comovente, capaz de encantar.

Todo o equipamento com que trabalha, e quantas outras tranqueiras de viver e inventar o viver, são alojados num motorhome, com o qual anda para cima e para baixo, na cidade de sua residência, ou em viagens por aí... Entre o final de 2017 e início de 2018, ele, com a família, percorreu 20.000km pela América do Sul, fazendo apresentações em praças, oficinas, quintais, e outros espaços nem sempre entendidos como destinados a produções teatrais-cênicas-musicais-performáticas-etc.

Sua proposta para a Oficina dos Fios foi que bordássemos um estandarte para integrar o espaço teatralizável de suas atuações. Lançado o desafio, combinamos que ele viria à nossa oficina, para nos mostrar o DeBanda. Equacionando as datas, a melhor mostrou-se justamente no dia de meus anos. Quase não me contive de tanto contentamento pela coincidência. Tomei a oportunidade como um presente.

Pouco depois das 13h, ele chegou à faculdade, vindo de 200km de estrada. Às 14hs, o grupo que integra a oficina foi até o caminhãozinho para conhecer a casa que anda, e ajudar a levar os equipamentos todos para a Oficina. Recuaram-se as mesas, para abrir uma clareira em meio à sala. Ajudou-se o artista a vestir o instrumento. Ele foi explicando cada fio, e tirando sons do instrumento múltiplo-nunca-acabado. Até que ele se levantou, e começou a dar lugar às personagens, e contar uma história performada-musicada-dançada-compartilhada. Encantamento e insanidade.

Afinal, “Sem a loucura que é o homem mais que a besta sadia, cadáver adiado que procria?” (Fernando Pessoa).

Ao final da apresentação, conversamos sobre o que vivemos ali: nós, da oficina, ele, e suas personagens. Depois reunimos as pessoas que vão trabalhar no estandarte, para planejarmos o trabalho. E prosseguimos, cada qual com seus fios, uns bordando, outros tecendo, outros tentando fazer crochê. Todos enleados nas tramas de nossos sonhos, desejos, desatinos. 

Quantas vezes, nos decursos de nossa vida, encontros tão intensos e especiais ocorrem? Não são muitas. E são sempre inesquecíveis.

César, querido, obrigada pela festa. Não importa a contagem dos anos, nem os marcos tão precários das repetições dos ciclos. Em qualquer data, eu não poderia ter recebido presente mais nobre e valioso!








Um comentário:

  1. Querida professora Alice, nós que nos sentimos presenteados com a sua atenção e carinho, que nos privilegiou com esse momento único.
    De fato, o que importa no decorrer dessa caminhada é as vivências que compartilhamos, e para mim foi uma das mais marcantes. Obrigada por ser essa mulher maravilhosa em nossas vidas.������

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