Cheguei ao hall da Secretaria de Cultura. No balcão,
perguntei pela pessoa com quem tinha marcado horário para conversar. Havia um
rapaz no guichê ao lado, também aguardando por atendimento. A menina perguntou
pelo meu nome, e entrou para me anunciar. Logo o funcionário veio ao meu
encontro, e falou meu nome novamente. Então o rapaz levantou-se para falar
comigo, efusivo. Fora meu aluno no final dos anos 1990, na Faculdade de Artes
Dulcina de Moraes. Reconheceu-me pela voz. Disse que quando me ouviu, teve
certeza de que me conhecia. Não poderia esquecer daquela voz ministrando as
aulas. Abraçou-se afetuosamente. Também fiquei feliz pelo reencontro.
Isso tem sido mais ou menos recorrente: a voz ecoando pelos
corredores a denunciar minha presença em salas e outros espaços.
Esse episódio me lembrou uma situação ocorrida no final dos
anos 1980, quando eu fazia aulas de canto com um professor muito especial, o
Luís Sales. Ele dava as aulas numa sala localizada num centro comercial. A sala
era dividida em dois ambientes: uma antessala, e o espaço de aula propriamente
dito, mais interno e preservado. Luís era desses professores que, antes de nos
ensinar qualquer coisa, faz perguntas que nos forçam a pensar sobre o que
queremos aprender. No primeiro dia de aula, ele me perguntou porque eu queria
fazer aulas de canto, e porque eu queria cantar. Pega de surpresa (eu já fizera
aulas de canto com outros professores que nunca perguntaram coisas assim...),
inventei uma resposta. Confesso que não fiquei convencida dela. Talvez nem ele.
Até hoje essa pergunta me acompanha, já congregada a uma multidão de outras perguntas
que vão se multiplicando.
Pois bem, naquele dia, ele propôs fazermos um exercício de projeção
da voz. Minha aula ocorria no início da noite, quando a maior parte dos
escritórios localizados naquele andar já se haviam fechado. A porta da antessala
permanecia entreaberta para a circulação de ar, e nós trabalhávamos na sala
interna. Então, ele me passou uma linha melódica, que eu deveria cantar em
vários tons, com o objetivo de furar a parede à frente, mantendo o controle da
voz: sem gritar, afinada, limpa, etc. Seguimos brincando com o exercício.
Amiúde ele me interrompia perguntando: Como
você fez isso? Ficou bom! Repita! Essa maneira de ele conduzir o processo
fazia com que eu observasse com mais atenção o modo como eu acionava a voz, tensionando
ou relaxando músculos, impulsionando a respiração, enfim, sem perder de vista o
objetivo de furar a parede, por mais absurdo que pudesse parecer.
A certa altura, alguém chegou à porta da antessala. Uma moça,
muito educada, pediu licença para falar com ele. Disse que a música cantada
estava muito bonita. Mas eles estavam em reunião e, em alguns momentos, estavam
com dificuldade para ouvirem-se uns aos outros, do outro lado do corredor, em função
do volume da minha voz. Pedia para, se possível, fecharmos a porta da
antessala. Eu levei um susto, e ele voltou sorrindo, com ares de vitória: Viu, você conseguiu, furou a parede com a
voz!
Voz e risada, em mim, são parceiras antigas... Volto ainda
um pouco mais, no tempo, ao início dos anos 1980. Num teatro, enquanto
aguardava o início de um espetáculo de cuja equipe técnica eu tomava parte, celebrava
o reencontro com uma antiga colega do ensino médio. Ela era muito atenta às
regras de cortesia e elegância. Em meio à conversa, escapou-me uma dessas
risadas que me crescem por dentro, até chegar o momento de eclodir. E o fazem
sem pedir permissão. Escancaram-me a boa, sacodem-me o corpo, e seu som se
espalha sem controle. Nem sempre me dou conta dos efeitos que elas produzem à
minha volta. Por vezes, preocupo-me com isso... depois esqueço...
Naquela situação, a eclosão da risada resultou numa
delicada repreensão por parte da minha antiga colega. Ela solicitou, com um
gesto, que eu me contivesse um pouco. Olhei à volta, ainda sob o efeito da
reverberação da risada. Logo foi preciso que eu retomasse meu posto para o
início do espetáculo. As demais risadas em processo de gestação, em mim, estavam
um pouco inquietas, sem saber seu eu tomaria alguma providência para inibi-las.
Na verdade, nunca consegui fazê-lo.
Talvez por isso mesmo seja tão recorrente eu ser encontrada
ou reconhecida pelas pessoas a partir da minha voz que pode até furar paredes,
embora eu não saia por aí falando aos gritos, ou pelas eclosões de risadas que
me escapam de chofre, espalhando-se pelos ambientes onde eu esteja, a denunciar
minha presença...
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