quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Uma fornada de chipa, uma manhã chuvosa, e o primo que veio de longe.



Para Nezinho, que não vejo há tanto tempo...
 E para Mara e Chico, com carinho.


Certas impressões ganham registro tão intenso na memória, que vez ou outra se mostram entre nossos pensamentos quotidianos, disparadas sabe-se lá porque, tão vivas quanto ao momento que as tenhamos vivido, não importa há quanto tempo.

Eu estaria por fazer 10 anos. Tínhamos nos mudado para a cidade para que eu ingressasse na vida escolar regular. E a cidade fervilhava com novidades, portas abrindo frestas para um mundo imenso e desconhecido, a instigar minha imaginação.

De algum lugar desse mundo chegou, para visitar os parentes, um primo que nascera e vivia muito distante, no Rio de Janeiro. Eu o conhecia de algumas fotos num velho álbum de família, sobre as quais minha mãe contava histórias e fazia descrições. Mas nas fotos, ele era sempre menino. Quando chegou, era um rapaz, querido, gentil com as curiosidades dos parentes, curioso para saber mais de nós.

Ficou hospedado na casa de uma irmã de meu pai. Fiz, a pé, o percurso entre a nossa casa e a dela algumas vezes, para vê-lo. Saía pela Rua Tiradentes até a Avenida Brasil, o que dava duas quadras, e então seguia mais quatro quadras até chegar ao endereço. Numa dessas visitas, levei-lhe meu álbum de recordações, e pedi que escrevesse alguma coisa para mim. Era um pequeno álbum, com um botão de rosa estampado na capa, e folhas com margens desenhadas. Minha mãe e meu pai haviam escrito poesias para mim, nas primeiras páginas. Meus irmãos formularam votos de alegria, sorte, sucesso. Colegas de escola prometiam amizade, sempre. No dia seguinte, recebi o álbum de volta. Suas palavras, escritas com letras muito miúdas, vieram carregadas de carinho, que quase me tiraram o sono, tamanha a alegria.

Na véspera de sua partida, minha mãe fez uma fornada de chipas para que ele levasse consigo, de volta para casa. Mas o dia amanheceu chuvoso, e lá pelo meio da manhã ela concluiu que não seria possível entregar-lhe o presente. Uma conclusão que me pareceu sem o menor sentido: desde quando chuva poderia ser impedimento para que se entregasse um pacote com chipas para uma pessoa querida em partida? Chuva nunca fora impedimento para nada, também não seria naquele momento. Eu cresci testemunhando meu pai sair para fazer pequenas viagens, ou visitas, mesmo quando estava chovendo: encilhava o cavalo, cobria-se com a capa a lhe dar um ar mais sóbrio do que o comum, o chapéu lhe protegia a cabeça, e seguiam, cavalo e cavaleiro, em passos seguros, perdendo-se no cinza da paisagem molhada. Do mesmo modo, minha mãe cuidava dos animais, atendia todas as demandas domésticas, a despeito de estar chovendo ou não. Não haveria de ser sempre assim?


Calcei meu par de galochas, empunhei o guarda-chuvas, segurei o pacote com firmeza, e segui, entre poças, enxurradas, lamas e barrancos, pelas seis quadras do percurso. Num instante estava lá, para espanto de todos, que admiraram minha coragem para enfrentar toda aquela chuva!

O sentimento mais sincero a pulsar me dizia que o desafio da chuva era de pouca valia diante do desejo de me despedir do primo que conquistara meu coração. Aliás, a chuva nem chegava a ser um desafio, para quem, aos 10 anos, tem o mundo para desvendar. A chuva pode ser, mesmo, um estímulo a mais, uma motivação.

Ou essa seria apenas uma percepção de alguém com não mais que 10 anos? Quantos projetos terão sido adiados por mentes e corações adultos com a desculpa de estarem as manhãs chuvosas e as ruas alagadas?

Aquela manhã, aquela chuva, minha determinação em ir vê-lo, a despedida, são imagens fortes que não se desfazem no tempo. Saudades, Nezinho!



Nenhum comentário:

Postar um comentário