Na terça feira pela manhã, precisei ir de táxi ao trabalho.
Às 8h, o motorista me aguardava à porta do prédio onde moro. Muito gentil,
identificou-se, nos cumprimentamos, informei o endereço para onde pretendia
seguir, combinamos o trajeto. Houve uma pausa nos encaminhamentos, enquanto o
carro era conduzido pelas ruas cheias de movimentos os mais diversos. Havia uma
espécie de tristeza naquele silêncio. Então o rapaz comentou, num tom entre desconsolado
e perplexo: ouvi pela emissora da rádio
que o Cristiano Araújo morreu, nesta madrugada, num acidente de carro. Aquela
informação provocava, nele, um sofrimento que não podia
permanecer calado. O nome Cristiano
Araújo soava com familiaridade em sua fala. E reivindicava minha
cumplicidade.
Naquele momento, pesou sobre mim um sentimento de incompetência
e ignorância. Como eu não sabia quem era Cristiano Araújo, nem o que fazia? Seria
algum político local? Algum empresário muito conhecido? Um artista? Como eu
desconhecia essa pessoa, eu, senhora de discursos que pretendem colocar na
berlinda relações de poder, estruturas hierárquicas que segregam alguns
segmentos da cultura em nome de outros, estes elitizados, excludentes? Como eu
sequer sabia o que fizesse o referido rapaz morto no acidente, enquanto aquele motorista se sentia profundamente comovido com o ocorrido?
Senti-me incapaz de compartilhar daquela comoção. Portanto,
incapaz de lhe compreender não só o sentimento experimentado por ele, mas boa parte do
contexto em que se insere. Fui lhe ouvindo os comentários, até compreender que
se tratava de um jovem cantor, com rápida ascensão, da chamada música sertaneja
universitária. Provavelmente um cantor presente na festa da exposição agropecuária, pensei (eu, que nunca vou à feira, e ainda desvio percursos para evitar suas cercanias, e os excessos de carros, pessoas, bebidas, barulho...).
Pensei, também, nos quantos adolescentes pobres que, em lugar de
sonhar em ser jogador de futebol, preferem o sonho de ser estrela do estilo musical
sertanejo universitário. Nos quantos irmãos que treinam, desde muito
cedo, suas vozes para o canto em duplas, e animam festas de amigos, imaginando,
algum dia, ocupar palcos iluminados ante plateias emocionadas. O motorista do
táxi poderia estar numa delas, com sua namorada, família, filhos.
Carreira musical inconsistente? Promovida às custas de jabás? Talvez.
Quantos artistas pagam volumosos jabás, sem conseguir ter seus trabalhos
reverberando no peito de sua audiência? Que lugar eu poderia ocupar que me
autorizaria a desqualificar o sentimento pulsante no peito do motorista do táxi,
naquela manhã de terça feira? Nenhum, além do lugar da arrogância e da
prepotência.
Na volta para casa no dia seguinte, final da tarde, tive o
percurso interceptado por algum evento que, em meio ao tumulto de carros,
viaturas, transeuntes, não conseguia identificar. Parada, esperando a liberação do trânsito de automóveis, chamou-se a atenção o número
de pessoas fotografando alguma coisa que minha visão não conseguia alcançar. Até
que uma senhora de meia idade me explicou: eram os corpos do Cristiano Araújo e
sua namorada (cujo nome só depois fui saber: Allana) sendo liberados para os funerais. Mais uma vez meu caminho se deparava com o do jovem cantor, em sua morte. Mais uma vez, eu me via pensando a respeito da vida, da arte, das reverberações de trabalhos, da produção de sentidos...
Nesse episódio, uma carreira foi interrompida abruptamente. Seus fãs,
assustados, lembraram-se quão finita e breve é nossa vida. Dessa finitude, nem
nossos ídolos estão livres. Mas eles permanecem, em alguma medida, vibrando nos trabalhos que realizaram. Em suas músicas.
Não, ainda não sei que músicas esse menino gravou. Mas lhe
tenho o mais profundo respeito. E compartilho o sentimento de perda com o
motorista do táxi, e com todos os demais que lhe sentem a falta. A isso, dá-se
o nome de compaixão. Por minha história, por minha estrada, experimento do
mesmo sentimento quando, por exemplo, ouço a voz da querida Inezita Barroso
nalguma gravação, ou vejo seus programas dominicais sendo reprisados na TV
Cultura.
Não, a música de Inezita não morreu. Nem a de Cristiano.
Vida longa à música de ambos! Às gentes deste Brasil de dentro e sua cultura! E à compaixão!
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