Vou
contar uma história para vocês. Mas antes, vou lembrar outra
história, mais antiga, que começa lá pelo século 19, quando várias pessoas, em
distintos países da Europa e da América andavam às voltas tentando inventar
alguma maneira de gravar e projetar imagens em movimento. Esse era um sonho tão
antigo quanto a própria humanidade. Pois bem: alguns aparatos foram inventados,
mas foi no final do século 19 que dois irmãos, na França, conhecidos como
Irmãos Lumière, inventaram uma engenhoca que ficou conhecida como
cinematógrafo. Essa engenhoca registrava e projetava imagens em movimento. Um
outro francês, Georges Méliès, viu no cinematógrafo a possibilidade de fazer
mágica! Ele era ilusionista, especializado em encantar os públicos enganando a
percepção. E compreendeu que o cinematógrafo seria um instrumento
importantíssimo para criar ilusões. Mais que isso: com aquele cinematógrafo nas
mãos, Méliès começou a contar histórias, mostrando lugares que não existiam,
que nunca ninguém vira antes. Méliès passou a experimentar, criar, inventar,
tendo às mãos quase nada além da engenhoca inventada pelos irmãos Lumière. Além
de ilusionista e encantador, ele era um contador de histórias, e instaurou o
que passamos a chamar de linguagem do cinema.
Já no final do século 20, a
revolução digital para a produção de imagens popularizou o acesso aos
equipamentos. As pessoas passaram a produzir fotografias, vídeos, filmes, coisa
que antes seria impossível. Muitas pessoas, apaixonadas pelo cinema, começaram
a contar suas próprias histórias. Eu tenho tido a oportunidade de conhecer
algumas pessoas muito especiais, que se dedicam a essa paixão. Conheci o Seu
Zagati, um catador de sucatas que construiu um cinema na periferia de Taboão da
Serra, o Seu Manoel Loreno, o ex-servente de pedreiro que produz filmes no
interior do Espírito Santo, Seu Simião Martiniano, o camelô que produz filmes
em Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife. E assim eu retorno à história que
vim contar a vocês.
Ela
pode começar assim: Era uma vez, no coração de Goiás
Um grupo de pessoas muito
diferentes entre si, ocupadas com afazeres muito distintos, que têm uma paixão
em comum: o cinema. Por isso, essas pessoas reúnem-se, periodicamente para
realizar filmes.
Essa trupe se chama Sistema CooperAção Amigos do Cinema.
Uma trupe aberta aos sonhadores, sempre tem gente entrando, tem aqueles que já
estiveram, e por alguma razão não podem estar mais. Mas serão sempre membros do
grupo. E um dia poderão ser convocados novamente! E tem aqueles que sempre
estiveram lá, dando sustentação ao projeto.
O princípio da cooperação é
a marca do trabalho dessa trupe. Ou seja: os filmes são feitos com orçamento
quase zero. A solidariedade, a colaboração são a garantia da realização. Cada
um traz o que de melhor tem a oferecer. Cada qual busca uma roupa, uma
ferramenta, uma ideia, uma solução para um desafio. Quando tudo é reunido, é
sempre muito mais do que se poderia imaginar.
O coletivo é liderado por
uma pessoa muito singular, muito especial
Esse é o cara! Não se
assustem: esse cartaz foi feito para integrar o cenário de um dos filmes. Ele
constava entre os procurados, numa delegacia. Procurado, por ser um encantador,
um ilusionista dos pássaros selváticos que somos todos nós. Ele nos encanta,
contando histórias, fazendo uso dos recursos do cinema. Ele reinventa os modos
de contar as histórias, não importam as condições adversas. Diante de cada
dificuldade, ele cria uma nova solução.
Esse é Martins Muniz,
diretor de cinema, líder do Sistema CooperAção Amigos do cinema.
Se ele é procurado, eu fui
encontra-lo aqui: num galpão entulhado de quinquilharias, onde ele transforma
sucatas em sonhos. Martins Muniz já trabalhou confeccionando cenários para
teatro, vitrines, carros alegóricos de carnaval e outros eventos. Suas mãos são
capazes de recriar, do inimaginável, formas que encantam. Como esse tubarão
flutuando perto do teto, por exemplo.
Ou com uma única câmera, um
argumento na cabeça, e um grupo de pessoas dispostas a compartilhar com ele o
seu sonho, é capaz de reinventar histórias que articulam questões sociais,
humor, ação, diversão. Eu fui convidada a conhecê-lo o set de filmagem em 2011,
e a partir de então integrei sua trupe, como aprendiz e apaixonada pelo
trabalho do Sistema Cooperação amigos do cinema. Desde o primeiro dia, ele
sempre me repreende quando eu me refiro a ele, individualmente. Sua resposta é:
eu sozinho não faço nada. Somos nós, é o coletivo, é o grupo quem faz. Essa,
uma de suas maiores lições. Embora eu sempre ressalte que sua liderança é
fundamental nesse processo, como aquele que mantém o espírito colaborativo do
grupo, e que sabe, como poucos, contar histórias.
O contador de histórias
prepara o roteiro, verifica o melhor lugar onde as gravações podem ser
realizadas, marca dia e hora, convoca a trupe. Mas o roteiro previamente
preparado vai sendo modificado, de acordo com as condições que o grupo vai
encontrando, com as pessoas que puderam comparecer, as ideias que vão surgindo.
Corta, recorta, parte, reparte: uma parte do texto, outra. Um quebra-cabeças,
um jogo de armar, em que prevalece a invenção e a alegria de brincar. Um cinema
tupiniquim, como Martins Muniz mesmo qualifica. Um cinema que não pretende ser
cult, ou intelectual, um cinema despretensioso, cujo projeto é contar histórias
que dão testemunhos autorais de seu tempo, de suas visões de mundo. E fazer
isso com o espírito lúdico, divertido, experimental.
É assim que cada um inventa
uma solução para o que seja necessário: a imitação de uma tatuagem, um
microfone de papel, uma roupa improvisada, um balaio, uma sombra, um reflexo,
um muro, uma luz vermelha...
Uma sala qualquer
transforma-se numa boate
O estacionamento ao lado
vira ringue onde o bandido e o mocinho travam uma luta brutal
A pastagem verde de alguma
fazenda se torna floresta a ser desbravada, onde escravos lutam pela liberdade,
num tempo indeterminado.
Tudo diante da lente de uma
única câmera. Por isso, é preciso que se façam muitas tomadas da mesma cena.
Repetem-se várias vezes, de vários ângulos, para que depois seja possível
montar o quebra-cabeças da história.
Aqui, não importa o que
falta, mas aquilo que dispomos para, a partir dali, dar forma ao que desejamos
realizar. Ninguém espera que sejam dadas as condições: a gente inventa essas
condições, e faz!
Motivados por esta criatura
que, a despeito dos problemas de saúde, que não são poucos, mantém o espírito
jovem, a vontade de realizar, de criar, o ânimo para desbravar imaginários, e
reinventar os dias.
Depois de gravadas todas as
tomadas, Martins Muniz trabalha com a edição neste cantinho de sua casa: uma
ilha de edição formada por um computador quase obsoleto, programas antigos,
condições que continuam precárias. Algum impedimento em função disso? De modo
algum! É exatamente aí que ele vai costurando sequência a sequência, resolvendo
questões de continuidade, articulando falas, gestos, imagens de modo que a
história faça sentido. Reinventando a própria história, seus ambientes, seu
contexto.
Algum tempo depois, a trupe
reúne-se, com seus convidados, outros curiosos, quem queira tomar parte, para
degustar o trabalho realizado, numa celebração. Quando observo todas essas
pessoas, dou-me conta de sua diversidade: são advogados, administradores,
professores, artistas, atores, fotógrafos, músicos, curiosos, reunidos em torno
do Muniz, para jogar, para contar histórias, para reinventar modos de ser e
estar no mundo. Com pouco, com tão pouco. Olhando para essas pessoas, e olhando
os trabalhos já realizados, posso afirmar que não há poder transformador maior
do que a solidariedade, o espírito de colaboração, a amizade. O sentido de
fraternidade.
Talvez o Sistema de
CooperAção Amigos do Cinema não chegue a transformar o mundo, mas com certeza
tem contado histórias de transformação do mundo, pelo sonho de um mundo melhor!
Filmes
mais recentes
Em 2012, foi realizado o
filme Fora de Padrão, o filme, cujo tema central é a homofobia.
Em 2013, foi realizado o
filme Capitão do Mato, que trata da luta de escravos pela liberdade, e da
instalação de quilombos no interior de Goiás.
Fecho minha fala, ao modo
como Martins Muniz costuma encerrar seus filmes:
Esta é a história que eu
trouxe para contar para vocês.
Quem quiser, que conte outra!
Quem quiser, que conte outra!
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