segunda-feira, 1 de julho de 2013

Cinema Tupiniquim no TEDxUFG


Vou contar uma história para vocês. Mas antes, vou lembrar outra história, mais antiga, que começa lá pelo século 19, quando várias pessoas, em distintos países da Europa e da América andavam às voltas tentando inventar alguma maneira de gravar e projetar imagens em movimento. Esse era um sonho tão antigo quanto a própria humanidade. Pois bem: alguns aparatos foram inventados, mas foi no final do século 19 que dois irmãos, na França, conhecidos como Irmãos Lumière, inventaram uma engenhoca que ficou conhecida como cinematógrafo. Essa engenhoca registrava e projetava imagens em movimento. Um outro francês, Georges Méliès, viu no cinematógrafo a possibilidade de fazer mágica! Ele era ilusionista, especializado em encantar os públicos enganando a percepção. E compreendeu que o cinematógrafo seria um instrumento importantíssimo para criar ilusões. Mais que isso: com aquele cinematógrafo nas mãos, Méliès começou a contar histórias, mostrando lugares que não existiam, que nunca ninguém vira antes. Méliès passou a experimentar, criar, inventar, tendo às mãos quase nada além da engenhoca inventada pelos irmãos Lumière. Além de ilusionista e encantador, ele era um contador de histórias, e instaurou o que passamos a chamar de linguagem do cinema.
Já no final do século 20, a revolução digital para a produção de imagens popularizou o acesso aos equipamentos. As pessoas passaram a produzir fotografias, vídeos, filmes, coisa que antes seria impossível. Muitas pessoas, apaixonadas pelo cinema, começaram a contar suas próprias histórias. Eu tenho tido a oportunidade de conhecer algumas pessoas muito especiais, que se dedicam a essa paixão. Conheci o Seu Zagati, um catador de sucatas que construiu um cinema na periferia de Taboão da Serra, o Seu Manoel Loreno, o ex-servente de pedreiro que produz filmes no interior do Espírito Santo, Seu Simião Martiniano, o camelô que produz filmes em Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife. E assim eu retorno à história que vim contar a vocês.

Ela pode começar assim: Era uma vez, no coração de Goiás
Um grupo de pessoas muito diferentes entre si, ocupadas com afazeres muito distintos, que têm uma paixão em comum: o cinema. Por isso, essas pessoas reúnem-se, periodicamente para realizar filmes.

Essa trupe se chama Sistema CooperAção Amigos do Cinema. Uma trupe aberta aos sonhadores, sempre tem gente entrando, tem aqueles que já estiveram, e por alguma razão não podem estar mais. Mas serão sempre membros do grupo. E um dia poderão ser convocados novamente! E tem aqueles que sempre estiveram lá, dando sustentação ao projeto.
O princípio da cooperação é a marca do trabalho dessa trupe. Ou seja: os filmes são feitos com orçamento quase zero. A solidariedade, a colaboração são a garantia da realização. Cada um traz o que de melhor tem a oferecer. Cada qual busca uma roupa, uma ferramenta, uma ideia, uma solução para um desafio. Quando tudo é reunido, é sempre muito mais do que se poderia imaginar.
O coletivo é liderado por uma pessoa muito singular, muito especial



Esse é o cara! Não se assustem: esse cartaz foi feito para integrar o cenário de um dos filmes. Ele constava entre os procurados, numa delegacia. Procurado, por ser um encantador, um ilusionista dos pássaros selváticos que somos todos nós. Ele nos encanta, contando histórias, fazendo uso dos recursos do cinema. Ele reinventa os modos de contar as histórias, não importam as condições adversas. Diante de cada dificuldade, ele cria uma nova solução.
Esse é Martins Muniz, diretor de cinema, líder do Sistema CooperAção Amigos do cinema.


Se ele é procurado, eu fui encontra-lo aqui: num galpão entulhado de quinquilharias, onde ele transforma sucatas em sonhos. Martins Muniz já trabalhou confeccionando cenários para teatro, vitrines, carros alegóricos de carnaval e outros eventos. Suas mãos são capazes de recriar, do inimaginável, formas que encantam. Como esse tubarão flutuando perto do teto, por exemplo.


Ou com uma única câmera, um argumento na cabeça, e um grupo de pessoas dispostas a compartilhar com ele o seu sonho, é capaz de reinventar histórias que articulam questões sociais, humor, ação, diversão. Eu fui convidada a conhecê-lo o set de filmagem em 2011, e a partir de então integrei sua trupe, como aprendiz e apaixonada pelo trabalho do Sistema Cooperação amigos do cinema. Desde o primeiro dia, ele sempre me repreende quando eu me refiro a ele, individualmente. Sua resposta é: eu sozinho não faço nada. Somos nós, é o coletivo, é o grupo quem faz. Essa, uma de suas maiores lições. Embora eu sempre ressalte que sua liderança é fundamental nesse processo, como aquele que mantém o espírito colaborativo do grupo, e que sabe, como poucos, contar histórias.


O contador de histórias prepara o roteiro, verifica o melhor lugar onde as gravações podem ser realizadas, marca dia e hora, convoca a trupe. Mas o roteiro previamente preparado vai sendo modificado, de acordo com as condições que o grupo vai encontrando, com as pessoas que puderam comparecer, as ideias que vão surgindo. Corta, recorta, parte, reparte: uma parte do texto, outra. Um quebra-cabeças, um jogo de armar, em que prevalece a invenção e a alegria de brincar. Um cinema tupiniquim, como Martins Muniz mesmo qualifica. Um cinema que não pretende ser cult, ou intelectual, um cinema despretensioso, cujo projeto é contar histórias que dão testemunhos autorais de seu tempo, de suas visões de mundo. E fazer isso com o espírito lúdico, divertido, experimental.


É assim que cada um inventa uma solução para o que seja necessário: a imitação de uma tatuagem, um microfone de papel, uma roupa improvisada, um balaio, uma sombra, um reflexo, um muro, uma luz vermelha...


Uma sala qualquer transforma-se numa boate


O estacionamento ao lado vira ringue onde o bandido e o mocinho travam uma luta brutal 


A pastagem verde de alguma fazenda se torna floresta a ser desbravada, onde escravos lutam pela liberdade, num tempo indeterminado.


Tudo diante da lente de uma única câmera. Por isso, é preciso que se façam muitas tomadas da mesma cena. Repetem-se várias vezes, de vários ângulos, para que depois seja possível montar o quebra-cabeças da história.
Aqui, não importa o que falta, mas aquilo que dispomos para, a partir dali, dar forma ao que desejamos realizar. Ninguém espera que sejam dadas as condições: a gente inventa essas condições, e faz!
Motivados por esta criatura que, a despeito dos problemas de saúde, que não são poucos, mantém o espírito jovem, a vontade de realizar, de criar, o ânimo para desbravar imaginários, e reinventar os dias.  


Depois de gravadas todas as tomadas, Martins Muniz trabalha com a edição neste cantinho de sua casa: uma ilha de edição formada por um computador quase obsoleto, programas antigos, condições que continuam precárias. Algum impedimento em função disso? De modo algum! É exatamente aí que ele vai costurando sequência a sequência, resolvendo questões de continuidade, articulando falas, gestos, imagens de modo que a história faça sentido. Reinventando a própria história, seus ambientes, seu contexto.


Algum tempo depois, a trupe reúne-se, com seus convidados, outros curiosos, quem queira tomar parte, para degustar o trabalho realizado, numa celebração.Quando observo todas essas pessoas, dou-me conta de sua diversidade: são advogados, administradores, professores, artistas, atores, fotógrafos, músicos, curiosos, reunidos em torno do Muniz, para jogar, para contar histórias, para reinventar modos de ser e estar no mundo. Com pouco, com tão pouco. Olhando para essas pessoas, e olhando os trabalhos já realizados, posso afirmar que não há poder transformador maior do que a solidariedade, o espírito de colaboração, a amizade. O sentido de fraternidade.
Talvez o Sistema de CooperAção Amigos do Cinema não chegue a transformar o mundo, mas com certeza tem contado histórias de transformação do mundo, pelo sonho de um mundo melhor!

Filmes mais recentes
Em 2012, foi realizado o filme Fora de Padrão, o filme, cujo tema central é a homofobia.
Em 2013, foi realizado o filme Capitão do Mato, que trata da luta de escravos pela liberdade, e da instalação de quilombos no interior de Goiás.


Fecho minha fala, ao modo como Martins Muniz costuma encerrar seus filmes:

Esta é a história que eu trouxe para contar para vocês.
 Quem quiser, que conte outra!





Nenhum comentário:

Postar um comentário