domingo, 23 de junho de 2013

Certas vozes, certas melodias



Alguns momentos ganharam registo tão particular na memória, que não mais os perdi de vista, a despeito de não estarem vinculados a grandes eventos, ou tomadas de decisão, ou qualquer outra referência marcante nos percursos da vida. Ao contrário. Foram momentos banais, embora portadores de alguns elementos comuns a todos: deslocamento em meio ao movimento da cidade, espírito desatento (talvez até disperso), a surpresa de uma sonoridade que, sem aviso prévio, toma o primeiro plano da cena, e arrebata a atenção, redimensionando o sentido da experiência em curso. Essa sonoridade é, especificamente, uma música que salta dentre todas as outras (incontáveis) que integram as programações das emissoras de rádio.

I
Já se passaram mais de 20 anos. Mas ainda sinto na pele o calor ameno do sol daquela manhã, quando estacionei o carro perto do portão da escola onde eu lecionava. As vozes das crianças chegavam até mim, rebrilhando ainda mais sob a luminosidade matutina. Quando estendi a mão para desligar o rádio, iniciavam-se os acordes de uma música conhecida, Trem das cores, de Caetano Veloso, mas executada de um modo como eu não ouvira antes. Tampouco conhecia a artista que a interpretava. Notei que sua voz também rebrilhava, dançando, naquela paisagem quotidiana, de modo inédito para mim. Ela atravessava o espaço com uma precisão e delicadeza que me prenderam o fôlego. Fiquei ali, parada, imersa naquela melodia, por uma extensão de tempo que foi muito além do cronometrado no relógio. Quando a música acabou, e o encantamento foi quebrado pela voz do locutor anunciando algum reclame, pude retomar a rotina de professora de ensino fundamental. Fui caminhando pelo pátio da escola com a sensação de que tomara um banho de rio.

II
Estava participando de um congresso de sociologia, em Campinas. Enquanto caminhava pelo campus, ouvi uma música que misturava timbres muito distintos, reverberando na paisagem um certo estranhamento e ao mesmo tempo um chamado à celebração. Algum instrumento com fole era acompanhado por palmas e percussão. Sua sonoridade alongava-se entre os edifícios. Alcançou-me. Acenou para mim. Acompanhei seu fluxo. Em meio à feira movimentada com bancas cheias de livro, encontrei uma banca onde se vendiam CDs de grupos vários, entre os quais, o Mawaca e suas músicas do mundo. Aceitei o convite para a viagem. 
Vinheta astrolábio, Mawaca

III
Havia algum tempo que eu me mudara para Goiânia. Durante o percurso que fazia para o trabalho, seguia acompanhada pela programação de alguma emissora de rádio local. Numa dessas manhãs, foi abordada por uma voz masculina que me pareceu frágil e forte ao mesmo tempo, apoiada por alguns acordes de violão, econômicos e precisos. Ela me contava, de modo sensível, quase sofrido, I hurt myself today to see if I still feel. I focus on the pain, the only thing that’s real. Quase estacionei à beira da via, impactada pela voz que me soprava aos ouvidos aqueles segredos sobre a dor, acompanhada pelos acordes do violão, plangentes, melancólicos. Prossegui, com o coração palpitante. Uma voz que eu não conhecia, bela e rústica, sofrida e sensível, tudo ao mesmo tempo, ao referir-se à própria dor, tocara na minha, apontando-a como a única coisa real.

IV 
Esta é uma experiência bem recente. Findara o dia. Depois da jornada de trabalho, ainda tive fôlego para ir ao mercado, em busca de frutas, pães, e outros itens de alimentação. À garagem, enquanto estacionava o veículo, e pensava em todas as sacolas e pastas e livros que teria de portar até minha residência, fui surpreendia por um entrelaçamento inusitado de sonoridades. A melodia, um clássico, poderia ser reconhecida logo nos primeiros acordes: A Primavera, de Vivaldi. O ritmo também familiar, chega ao corpo com vibração particular: as palmas e o recorte da música e dança flamencas. No entanto, o encontro entre um e outro pareceu multiplicar em megatons a vivacidade da primavera (distante, ainda, pois há pouco adentramos o inverno), ao mesmo tempo em que a primavera pareceu servir como uma luva para a atmosfera da música flamenca. Pelos quase quatro minutos de duração da melodia me olvidei dos afazeres, do peso das bagagens, da correria do dia a me exaurir. O pulso ajustou-se ao andamento vivaz das palmas a marcar uma dança de tudo à volta, e o pensamento flutuou pelos acordes vivaldianos. Esse teria sido o sentido de alegria a tomar-me assim, sem razão instrumental. Alegria que jorra, de repente, como água morna a aquecer no frio, como luz cálida sobre arbusto florido, como aves em algazarra de volta ao ninho nos fins de tarde.





2 comentários:

  1. La música posee esa misteriosa facultad de conectarse con cuestiones tan profundas de nosotros mismos que muchas veces sólo nos percatamos de ellas cuando determinadas letras/notas las han desencadenado... y nos quedamos viendo como el sonido simplemente lo despierta todo, o lo acalla todo.

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