Alguns momentos ganharam registo tão particular na memória,
que não mais os perdi de vista, a despeito de não estarem vinculados a grandes
eventos, ou tomadas de decisão, ou qualquer outra referência marcante nos
percursos da vida. Ao contrário. Foram momentos banais, embora portadores de
alguns elementos comuns a todos: deslocamento em meio ao movimento da cidade,
espírito desatento (talvez até disperso), a surpresa de uma sonoridade que, sem
aviso prévio, toma o primeiro plano da cena, e arrebata a atenção, redimensionando
o sentido da experiência em curso. Essa sonoridade é, especificamente, uma
música que salta dentre todas as outras (incontáveis) que integram as
programações das emissoras de rádio.
I
Já se passaram mais de 20 anos. Mas ainda sinto na pele o
calor ameno do sol daquela manhã, quando estacionei o carro perto do portão da
escola onde eu lecionava. As vozes das crianças chegavam até mim, rebrilhando
ainda mais sob a luminosidade matutina. Quando estendi a mão para desligar o
rádio, iniciavam-se os acordes de uma música conhecida, Trem das cores, de Caetano Veloso, mas executada de um modo como eu
não ouvira antes. Tampouco conhecia a artista que a interpretava. Notei que sua
voz também rebrilhava, dançando, naquela paisagem quotidiana, de modo inédito
para mim. Ela atravessava o espaço com uma precisão e delicadeza que me
prenderam o fôlego. Fiquei ali, parada, imersa naquela melodia, por uma extensão
de tempo que foi muito além do cronometrado no relógio. Quando a música acabou,
e o encantamento foi quebrado pela voz do locutor anunciando algum reclame,
pude retomar a rotina de professora de ensino fundamental. Fui caminhando pelo
pátio da escola com a sensação de que tomara um banho de rio.
II
Estava participando de um congresso de sociologia, em Campinas. Enquanto caminhava pelo campus, ouvi uma música que misturava timbres muito distintos, reverberando na paisagem um certo estranhamento e ao mesmo tempo um chamado à celebração. Algum instrumento com fole era acompanhado por palmas e percussão. Sua sonoridade alongava-se entre os edifícios. Alcançou-me. Acenou para mim. Acompanhei seu fluxo. Em meio à feira movimentada com bancas cheias de livro, encontrei uma banca onde se vendiam CDs de grupos vários, entre os quais, o Mawaca e suas músicas do mundo. Aceitei o convite para a viagem.
Vinheta astrolábio, Mawaca
Estava participando de um congresso de sociologia, em Campinas. Enquanto caminhava pelo campus, ouvi uma música que misturava timbres muito distintos, reverberando na paisagem um certo estranhamento e ao mesmo tempo um chamado à celebração. Algum instrumento com fole era acompanhado por palmas e percussão. Sua sonoridade alongava-se entre os edifícios. Alcançou-me. Acenou para mim. Acompanhei seu fluxo. Em meio à feira movimentada com bancas cheias de livro, encontrei uma banca onde se vendiam CDs de grupos vários, entre os quais, o Mawaca e suas músicas do mundo. Aceitei o convite para a viagem.
Vinheta astrolábio, Mawaca
III
Havia algum tempo que eu me mudara para Goiânia. Durante o
percurso que fazia para o trabalho, seguia acompanhada pela programação de
alguma emissora de rádio local. Numa dessas manhãs, foi abordada por uma voz
masculina que me pareceu frágil e forte ao mesmo tempo, apoiada por alguns
acordes de violão, econômicos e precisos. Ela me contava, de modo sensível,
quase sofrido, I hurt myself today to see if I still feel. I focus on the pain, the only thing that’s real. Quase estacionei à beira da via, impactada
pela voz que me soprava aos ouvidos aqueles segredos sobre a dor, acompanhada
pelos acordes do violão, plangentes, melancólicos. Prossegui, com o coração
palpitante. Uma voz que eu não conhecia, bela e rústica, sofrida e sensível,
tudo ao mesmo tempo, ao referir-se à própria dor, tocara na minha, apontando-a
como a única coisa real.
IV
Esta é uma experiência bem recente. Findara o dia. Depois da jornada de trabalho, ainda tive
fôlego para ir ao mercado, em busca de frutas, pães, e outros itens de
alimentação. À garagem, enquanto estacionava o veículo, e pensava em todas as
sacolas e pastas e livros que teria de portar até minha residência, fui
surpreendia por um entrelaçamento inusitado de sonoridades. A melodia, um
clássico, poderia ser reconhecida logo nos primeiros acordes: A Primavera, de
Vivaldi. O ritmo também familiar, chega ao corpo com vibração particular: as
palmas e o recorte da música e dança flamencas. No entanto, o encontro entre um
e outro pareceu multiplicar em megatons a vivacidade da primavera (distante,
ainda, pois há pouco adentramos o inverno), ao mesmo tempo em que a primavera pareceu
servir como uma luva para a atmosfera da música flamenca. Pelos quase quatro
minutos de duração da melodia me olvidei dos afazeres, do peso das bagagens, da
correria do dia a me exaurir. O pulso ajustou-se ao andamento vivaz das palmas
a marcar uma dança de tudo à volta, e o pensamento flutuou pelos acordes vivaldianos. Esse teria sido o sentido
de alegria a tomar-me assim, sem razão instrumental. Alegria que jorra, de
repente, como água morna a aquecer no frio, como luz cálida sobre arbusto
florido, como aves em algazarra de volta ao ninho nos fins de tarde.
La música posee esa misteriosa facultad de conectarse con cuestiones tan profundas de nosotros mismos que muchas veces sólo nos percatamos de ellas cuando determinadas letras/notas las han desencadenado... y nos quedamos viendo como el sonido simplemente lo despierta todo, o lo acalla todo.
ResponderExcluirPerfeito!
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