Quando eu falo sobre meu corpo, não falo
sobre mim, mas sobre alguma coisa que me pertence,
que é minha propriedade. Esta condição instala uma cisão insuperável entre o
sujeito que é e seu corpo, o corpo que o sujeito tem. Na lista de suas propriedades,
o corpo alinha-se às demais posses: a casa, equipamentos, hobbies,
carro, etc. Como propriedade, o corpo está sujeito a pareceres, consultorias e
atuação de profissionais experts em certos aspectos de seu
funcionamento. Como proprietário, o dono, ou a dona, do corpo funciona como
usuário, ou usuária, que conhece algumas de suas funções, e sabe colocá-lo para
funcionar, com mais ou menos habilidade, de acordo com os desejos (de quem?) e os desígnios (de quem?). Atua, em alguma medida, como um
cliente, um consumidor, ou consumidora, às voltas com seu equipamento. Se
alguma coisa no corpo não funciona, procura-se um técnico para consertar. Se o
tédio se impõe, providencia-se logo uma reforma, para renovar a paisagem, ao
sabor dos modismos. A propósito, há profissionais autointitulados personal-quase-tudo
(personal trainer, personal organizer, personal stilist, personal fashion...),
cuja principal tarefa é nos ajudar a tornar isso que nos pertence, o corpo, em
mercadoria mais atraente, de acordo com as regras de mercado vigentes.
Quem é essa entidade-eu que detém a propriedade do meu
corpo? De qual lugar exerço a propriedade sobre o corpo? De qual torre do
castelo existencial observo, escolho, decido? É possível alguma libertação
desse aprisionamento? Há algum caminho possível de reencontro com o corpo
próprio – que não é o próprio corpo... – ?
Como exercício, proponho pensar a mim mesma como corpo em sua inteireza
– capaz de sentir, perceber, lembrar, pensar, vibrar... –. E pensar dessa forma
é buscar restabelecer uma relação com isso que sou eu, e que resulta da
interação entre corpo, experiência, memória, transcendência, tudo junto, tudo
inseparável. Supõe, sobretudo, a expansão da autopercepção, o autoexame, a
coragem para o conhecimento efetivo de si...
E como proceder? Por onde começar? Alguns caminhos se mostram possíveis,
prováveis. Dentre eles, escolho comentar, aqui, aquele que se incia pela
linguagem, supondo que ela resulte de certa compreensão do mundo e de mim
mesma. Modificando-a, quem sabe, contribua para modificar essa relação. Assim
sendo, no âmbito da linguagem, tentarei adotar algumas estratégias, que se
seguem, e vejamos o que ocorre:
1. Não me referirei mais ao meu corpo como algo que me pertence, mas a mim
mesma enquanto corpo (ou qualquer parte do corpo-eu). Assim, em lugar de
dizer-pensar-sentir “meu pé está doendo”, passo a dizer-pensar-sentir “me dói o
pé”; ou em lugar de “meu corpo ficou todo encharcado”, “encharquei-me o corpo
todo”; ainda, em lugar de “levei minha mão até a maçaneta da porta”, “alcancei
a maçaneta da porta com a mão”. São exemplos banais, tolos quem sabe, mas talvez
me ajudem a realinhar uma posição em relação a mim mesma, como um todo. Uma
posição que é perceptiva, mas também política, no tocante a assumir o corpo que
eu sou e não a propriedade de um corpo vulnerável às intervenções mais radicais
de uma sociedade de consumo, que reifica todas as dimensões do ser.
2. Buscarei, sempre que possível, adotar a mesma orientação em relação às
outras pessoas. Algo mais ou menos assim: em lugar de dizer-pensar-sentir “ela
tem os olhos verdes”, preferir “ela é toda olhos verdes”; ou
“sofreu uma queda e quebrou-se a perna” em lugar de "a perna dele quebrou numa queda"; e ainda “dói-lhe a cabeça” em lugar de "sua cabeça está doendo"...
3. Talvez haja algumas situações em que, mesmo pensando a partir do verbo ser, ainda
seja o caso de adotar verbo ter, na medida em que o tópico em questão seja
resultado de alguma aquisição efetiva. Por exemplo, quando as unhas postiças
chamam a atenção, cabe a pergunta: “Suas unhas são bem desenhadas. São
importadas?”; ou “ Que belo par de peitos ela tem!”, depois da cirurgia
plástica.
Ser o corpo em cada aspecto é condição bem diversa à de tê-lo, exercer
sua propriedade. Aquele que tem seu corpo não necessariamente o conhece, pois
não é o corpo. Ao contrário, domina-o, submete-o, decide sobre ele. Ser o corpo
supõe escuta interna, reconhecimento de si em cada recanto, atenção intensa,
autonomia – alguma que seja – nas decisões tomadas acerca de si, o corpo
próprio.
Talvez descubra que estou enganada, e não seja nada disso. Terá valido
pelo exercício.
Muito bom,mesmo!... Essa é a trilha da melhor auto-consciência. PARABÉNS!!!...
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