terça-feira, 4 de junho de 2013

Ter ou ser o corpo


Quando eu falo sobre meu corpo, não falo sobre mim, mas sobre alguma coisa que me pertence, que é minha propriedade. Esta condição instala uma cisão insuperável entre o sujeito que é e seu corpo, o corpo que o sujeito tem. Na lista de suas propriedades, o corpo alinha-se às demais posses: a casa, equipamentos, hobbies, carro, etc. Como propriedade, o corpo está sujeito a pareceres, consultorias e atuação de profissionais experts em certos aspectos de seu funcionamento. Como proprietário, o dono, ou a dona, do corpo funciona como usuário, ou usuária, que conhece algumas de suas funções, e sabe colocá-lo para funcionar, com mais ou menos habilidade, de acordo com os desejos (de quem?) e os desígnios (de quem?). Atua, em alguma medida, como um cliente, um consumidor, ou consumidora, às voltas com seu equipamento. Se alguma coisa no corpo não funciona, procura-se um técnico para consertar. Se o tédio se impõe, providencia-se logo uma reforma, para renovar a paisagem, ao sabor dos modismos. A propósito, há profissionais autointitulados personal-quase-tudo (personal trainer, personal organizer, personal stilist, personal fashion...), cuja principal tarefa é nos ajudar a tornar isso que nos pertence, o corpo, em mercadoria mais atraente, de acordo com as regras de mercado vigentes. 

Quem é essa entidade-eu que detém a propriedade do meu corpo? De qual lugar exerço a propriedade sobre o corpo? De qual torre do castelo existencial observo, escolho, decido? É possível alguma libertação desse aprisionamento? Há algum caminho possível de reencontro com o corpo próprio – que não é o próprio corpo... – ?

Como exercício, proponho pensar a mim mesma como corpo em sua inteireza – capaz de sentir, perceber, lembrar, pensar, vibrar... –. E pensar dessa forma é buscar restabelecer uma relação com isso que sou eu, e que resulta da interação entre corpo, experiência, memória, transcendência, tudo junto, tudo inseparável. Supõe, sobretudo, a expansão da autopercepção, o autoexame, a coragem para o conhecimento efetivo de si...

E como proceder? Por onde começar? Alguns caminhos se mostram possíveis, prováveis. Dentre eles, escolho comentar, aqui, aquele que se incia pela linguagem, supondo que ela resulte de certa compreensão do mundo e de mim mesma. Modificando-a, quem sabe, contribua para modificar essa relação. Assim sendo, no âmbito da linguagem, tentarei adotar algumas estratégias, que se seguem, e vejamos o que ocorre:

1.   Não me referirei mais ao meu corpo como algo que me pertence, mas a mim mesma enquanto corpo (ou qualquer parte do corpo-eu). Assim, em lugar de dizer-pensar-sentir “meu pé está doendo”, passo a dizer-pensar-sentir “me dói o pé”; ou em lugar de “meu corpo ficou todo encharcado”, “encharquei-me o corpo todo”; ainda, em lugar de “levei minha mão até a maçaneta da porta”, “alcancei a maçaneta da porta com a mão”. São exemplos banais, tolos quem sabe, mas talvez me ajudem a realinhar uma posição em relação a mim mesma, como um todo. Uma posição que é perceptiva, mas também política, no tocante a assumir o corpo que eu sou e não a propriedade de um corpo vulnerável às intervenções mais radicais de uma sociedade de consumo, que reifica todas as dimensões do ser.

2.   Buscarei, sempre que possível, adotar a mesma orientação em relação às outras pessoas. Algo mais ou menos assim: em lugar de dizer-pensar-sentir “ela tem os olhos verdes”, preferir “ela é toda olhos verdes”; ou “sofreu uma queda e quebrou-se a perna” em lugar de "a perna dele quebrou numa queda"; e ainda “dói-lhe a cabeça” em lugar de "sua cabeça está doendo"...

3.   Talvez haja algumas situações em que, mesmo pensando a partir do verbo ser, ainda seja o caso de adotar verbo ter, na medida em que o tópico em questão seja resultado de alguma aquisição efetiva. Por exemplo, quando as unhas postiças chamam a atenção, cabe a pergunta: “Suas unhas são bem desenhadas. São importadas?”; ou “ Que belo par de peitos ela tem!”, depois da cirurgia plástica.

Ser o corpo em cada aspecto é condição bem diversa à de tê-lo, exercer sua propriedade. Aquele que tem seu corpo não necessariamente o conhece, pois não é o corpo. Ao contrário, domina-o, submete-o, decide sobre ele. Ser o corpo supõe escuta interna, reconhecimento de si em cada recanto, atenção intensa, autonomia – alguma que seja – nas decisões tomadas acerca de si, o corpo próprio.

Talvez descubra que estou enganada, e não seja nada disso. Terá valido pelo exercício.



Um comentário:

  1. Muito bom,mesmo!... Essa é a trilha da melhor auto-consciência. PARABÉNS!!!...

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