Lisístrata, a greve do sexo é uma comédia grega escrita pelo grego ateniense Aristófanes, que teria vivido por volta dos anos 445 e 385 antes da era cristã. Ela conta a história do levante de mulheres de Atenas, com a parceria das espartanas, lideradas por Lisístrata, contra a guerra interminável entre soldados atenienses e espartanos. A guerra ceifa a vida dos homens e dos filhos dessas mulheres, além de esvaziar os cofres públicos. Elas, então, decidem deflagrar uma greve de sexo, que só é interrompida quando seus maridos assinam o acordo de paz. O acordo, personificado pela própria figura da Paz corporificada, é a condição para que se inicie uma orgia. Fecha-se o pano. Fim de espetáculo.
Em meados dos anos 1980, uma amiga integrou o elenco que estava trabalhando na montagem do espetáculo. Ela faria exatamente a personagem Paz. Eu comecei a ajuda-la na na composição da personagem. Para tanto passei a comparecer aos ensaios. Ela desistiu de participar, e eu acabei assumindo o papel. Tinha me afeiçoado. Ao longo das demais cenas, eu participava do côro feminino. A certa altura, deixava o côro, indo preparar a personagem final, com maquiagem intensa, apliques que alongavam os cabelos até à altura das pernas, um véu muito transparente e o corpo nu.
O elenco era numeroso. No decurso dos trabalhos, delineou-se uma divergência entre o grupo dos homens, autorreferidos como mais profissionais, exigentes no tocante aos rigores da produção, e o grupo das mulheres, por eles apontadas como amadoras, pouco profissionais. As tensões decorrentes dessa situação intensificaram-se desde circunstâncias pontuais até uma predisposição quase permanente para a discussão.
Se o elenco feminino, em geral, era considerado amador, especialmente eu era destinatária de piadas recorrentes. A personagem Paz não tinha fala, e a mulher do côro se manifestava poucas vezes, no coletivo, sem destaque. Amiúde, eu ouvia por parte de alguns dos atores a pergunta: “Vocês já ouviram a fala dela? Gente, prestem atenção, senão não ouvimos sua voz!”
A atriz que interpretava Lampito, a espartana que participava na assembleia de mulheres atenienses, na primeira cena, começou a cobrar do diretor uma tomada de posição em relação às provocações recorrentes do elenco masculino. O diretor tentava contornar a situação, sem confrontos.
Havia, sim, uma cisão claramente marcada entre homens e mulheres na montagem daquele espetáculo que tratava exatamente de uma greve deflagrada por mulheres ante o comportamento competitivo e belicoso dos homens... curiosa situação...
A pré-estreia do espetáculo estava agendada para um sábado, numa cidade satélite. Funcionaria como um ensaio geral com público. Na quinta-feira da semana seguinte ocorreria a estreia para temporada de várias semanas no teatro onde tudo já estava devidamente montado: cenário, iluminação, sonorização, etc. Na quinta feira de véspera, a atriz que interpretava Lampito, depois do ensaio e de alguns confrontos com o elenco masculino, anunciou sua saída do espetáculo. Não se sujeitaria mais àquela situação. Antes de se retirar, desafiou o diretor: “Quero ver você estrear essa peça”.
Lisístrata andava com a popularidade em alta, por aqueles tempos. Numa faculdade de artes cênicas, um professor acabara de montar a cena da assembleia, fazendo alguns experimentos de atuação, cenário e figurino. Alguém sugeriu convidar a atriz que interpretava Lampito dessa outra montagem, e assim se fez: a pré-estreia, na cidade satélite, contou com a atriz que fazia parte do outro projeto. Embora tudo tenha transcorrido bem, ela comunicou que não poderia permanecer no espetáculo, por uma questão ética. Sua atuação fora dirigida pelo outro diretor, e estava articulada a uma concepção de cena diversa daquela da qual fazíamos parte. Desse modo, voltávamos à estaca zero. E na segunda feira nos reunimos no teatro, para buscar alguma solução.
Entre as poucas saídas disponíveis, considerou-se a possibilidade de que eu assumisse a personagem em questão. Essa solução, contudo, apresentava um problema. A ideia inicial era preservar a imagem final da Paz. Assim, para assumir Lampito, foi necessário construir um perfil com traços muito distintos e próprios também. Enquanto a Paz era sensual, sinuosa, cabelos longos e esvoaçantes, cercada de tecidos leves em tons de branco e azul claro, Lampito era uma guerreira, portando capa e armadura, botas, cabelos presos, roupas de couro em tons de marrom escuro e preto, gestos duros e decididos, voz grave e firme, com espaços para algumas doses de humor. Assim, os homens do elenco passaram a ter oportunidades multiplicadas para ouvir a minha voz, desde a primeira cena...
Os ensaios aconteceram em apenas dois dias, terça e quarta feiras, com estreia já na quinta-feira, entre sustos, mas sem comprometer o espetáculo.
O elenco masculino recuou da postura mais agressiva, tendo passado a ter mais cuidado em relação à linguagem. Ainda e assim, seu perfil se manteve marcadamente arrogante, com necessidade de se impor, em relações de poder assimétricas.
A temporada naquele teatro seguiu-se a uma série de temporadas curtas em outras cidades satélites, com uma diversidade de situações que, de diferentes formas, replicaram para os contextos da produção e das relações com os públicos as questões tratadas pelo texto teatral. Sua atualidade chama a atenção.
Do mesmo modo, merece destaque o elenco personificando a tensão desenhada pelo espetáculo, explicitando o quanto essas são questões que pulsam, movendo nossa sociedade marcadamente patriarcal, machista e belicosa. Mesmo quando se trata do campo da arte, cujos agentes reivindicam para si comportamentos capazes de criticar o status quo...
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