1984
Recém-formada no curso de graduação, comecei a dar aulas numa escola particular,
para ganhar um salário que era quase nada. Minha irmã foi internada com um
quadro de apendicite supurada. Ficou na UTI por vários dias. Transcorria o mês
de abril. Foi bem por esses dias que a população ocupou as ruas, no movimento
pelas Diretas Já. Queríamos que o presidente da República fosse eleito pelo nosso
voto, e não pelo voto dos parlamentares. Houve panelaço, e usamos roupas
amarelas. Pelo menos uma fita amarela presa à lapela. Eu transitava entre a
escola e o hospital, trajando amarelo, vibrando com o que estava acontecendo.
O Congresso, a essa época, era formado por parlamentares de
dois partidos: o ARENA, que apoiava o governo militar, e o MDB, que ensaiava
alguma forma de oposição. As mobilizações que aconteceram durante o ano
acabaram fazendo emergir um nome que conseguia negociar tanto com o Parlamento
quanto com a população. Tancredo Neves, em meados dos anos 60, fora
responsável pelo batismo do partido ao qual se vinculava: Movimento Democrático
Brasileiro. Ali, em meados dos anos 80, se iniciavam as negociações que o
levariam a aceitar candidatar-se à presidência, trazendo José Sarney como seu
vice, e assumindo o papel daquele que, atendendo os anseios da população, faria
a transição do país de volta ao regime democrático, instalando uma nova
Constituinte, e restaurando as eleições diretas.
1985
Em 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral se reuniu, e
elegeu Tancredo Neves para um mandato de seis anos. Concorreu com ele Paulo
Maluf, pelo ARENA. Mas já se sabia que a companhia de José Sarney, ali,
representava a presença do segmento político que apoiara a instalação da
ditadura. Os avanços aconteciam acompanhados pelas sombras.
Eu estava dando aulas numa escola localizada entre o Guará I e o Guará
II. Saí às 9h30 da noite, e fui para a parada de ônibus, para retornar
ao Plano Piloto. Havia outras pessoas por ali. No dia seguinte, Tancredo tomaria
posse. Um rapaz chegou, com um radinho, ouvindo o noticiário. Tancredo tinha
sido internado no Hospital de Base, em quadro grave. Um silêncio se instalou
entre os que estavam ali. Havia uma perplexidade no ar. Tive a impressão de que
todas as multidões em todas as ruas em todas as cidades que reivindicavam as
diretas já desde o ano anterior de repente tinham silenciado.
No dia seguinte, José Sarney tomou posse, com Tancredo internado.
O ato, que não tinha amparo legal, resultou de negociações diversas dentro do
MDB, com os militares e o Parlamento. Tancredo veio a morrer em abril. Diz-se
que, de fato, em 20 de abril. Mas oficialmente em 21, em razão da data
simbólica. A música Coração de Estudante, cantada por Milton Nascimento, que fora entoada durante as Diretas Já, foi a trilha sonora que acompanhou os funerais de Tancredo.
O país teria, pela frente, 6 anos com Sarney na presidência, e uma crise econômica sem precedentes, com inflação galopante. Ao final do seu mandato, a inflação chegara aos 84% mensais.
O país teria, pela frente, 6 anos com Sarney na presidência, e uma crise econômica sem precedentes, com inflação galopante. Ao final do seu mandato, a inflação chegara aos 84% mensais.
1987/1988
Em 1987, também em torno a mobilizações populares, foi
instalada a Assembleia Constituinte. Houve debates e participação dos segmentos
sociais em várias instâncias. Em 5 de outubro, foi promulgada a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
Nesse ínterim, eu, professora da rede pública de ensino do Distrito Federal, participava intensamente do movimento sindical, em greves e mobilizações que enfrentavam as políticas locais, comandadas por governadores indicados pela Presidência da República. Os chamados governadores biônicos. O último deles, Joaquim Roriz, tomou posse em setembro de 1988.
Nesse ínterim, eu, professora da rede pública de ensino do Distrito Federal, participava intensamente do movimento sindical, em greves e mobilizações que enfrentavam as políticas locais, comandadas por governadores indicados pela Presidência da República. Os chamados governadores biônicos. O último deles, Joaquim Roriz, tomou posse em setembro de 1988.
1989
À saída do Supermercado Panelão, um mercado popular no
início da Asa Norte, encontrei um menino que vigiava carros. Trocamos algumas
palavras. Elas vibravam certa expectativa que nos rondava. Aproximava-se o dia
quando, depois de duas décadas e meia, haveria eleições diretas para escolhermos
o Presidente da República. Na campanha eleitoral, de um lado, Fernando Collor
de Melo assumia o papel de “caçador de marajás”, e de outro, Luiz Inácio Lula
da Silva, líder sindical, assumia as vozes dos segmentos mais pobres, dos
trabalhadores, dos assalariados. Em Brasília, Collor era antigo conhecido. Por isso
mesmo, seria destinatário de poucos dos votos distritais. Os eleitores
brasilienses votariam, majoritariamente, em Lula. O menino, no estacionamento
do supermercado, sabia disso. Abraçou-me. Havia esperança entre nós. Havia esperança
no ar.
O menino, aluno de escola pública, eu, professora na rede
pública de ensino, acreditávamos ser possível instaurar novos tempos, com
nossas vozes representadas, final.
Em Brasília, as
eleições para a presidência ganhavam um sentido ainda mais forte, pois
representavam a instauração de um tempo quando o Distrito Federal passaria não
só a eleger seu próprio governador, como ter sua Assembleia Legislativa. Havia,
sim, uma esperança vibrando no ar.
Contrariando nossos sonhos, Fernando Collor de Melo venceu
aquelas eleições, e tomou posse em 1990. Joaquim Roriz, o último
governador biônico do Distrito Federal, foi também o primeiro governador
eleito, depois de um breve afastamento do cargo, enquanto assumiu a pasta de Ministro da Agricultura, no quadro de ministros do Presidente Collor. Assim, começávamos os novos tempos...
1990
Para combater a inflação de quase 3 dígitos ao mês, herdada
de José Sarney, Fernando Collor de Melo confiscou as poupanças de toda a
população, logo que assumiu o cargo de Presidente da República. Foi um
desastre. Talvez não seja possível relatar a sensação que foi, pela manhã,
descobrir que cada cidadão só teria acesso, de todas as economias depositadas
nas agências bancárias, a 50 mil cruzeiros, o que corresponderia a algo pouco
mais que 6 mil reais, hoje. Houve toda sorte de desespero e tragédias. Um
senhor, no dia anterior, vendeu sua fazenda e todos os pertences, para, no dia
seguinte, fechar negócio em outro lugar, comprando sua nova morada. O dinheiro,
depositado em sua conta no dia anterior, foi sequestrado durante a noite, e ele
amanheceu sem nada. Inumeráveis suicídios foram computados em razão de
situações como essa.
1991
A popularidade de Collor caia na mesma velocidade em que a
inflação continuava subindo. Em 1991, estava na casa dos 400% ao ano. A Casa da
Dinda, residência oficial do Presidente, foi nome que passou a ocupar as
conversas em todos os momentos. Novamente a população começou a se mobilizar. A
insatisfação grassou o país nos quatro pontos cardeais. Ao mesmo tempo,
pipocavam notícias de fraudes financeiras, escândalos familiares, embates e
bate-bocas de toda sorte entre o Presidente, seus aliados, a base governista no
Parlamento, o Legislativo, etc.
Em abril, Collor voltou a Juazeiro, a terra do Padre
Cícero, um dos pontos fortes de sua campanha eleitoral, quando venceu Lula no
segundo turno. No entanto, nesse retorno, já não gozava de tanta força e
felicidade. Ao contrário. A população estava já insatisfeita com a atuação do
Presidente que prometera caçar os marajás e atender às necessidades dos pobres.
Havia contestação no ar. A população se preparara para manifestar-se sob a
palavra de ordem do “Fora Collor”. Houve repressão policial e pancadarias. O
Presidente pronunciou, então, um discurso inflamado que reverberou pela
República afora. Ele dizia não ter medo de nada. E bradou que tinha nascido com
“aquilo roxo”, fazendo referência à expressão popular que liga a ideia de “saco
roxo” à ideia de masculinidade e coragem. Assim, encarava a população
insatisfeita, afirmando que enfrentaria todos aqueles que conspirassem contra o
processo democrático.
Juazeiro foi o marco inicial das manifestações contrárias
ao seu governo. A partir dali sua popularidade viveu uma queda livre, na mesma
proporção em que cresciam as crises e escândalos.
1992
Collor estava pressionado pela instalação de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito que investigava um esquema de corrupção em seu
governo. Como estratégia desesperada, convocou a população para que ocupasse as
ruas, vestindo verde e amarelo, em defesa da estabilidade política da nação. No
dia 16 de agosto, multidões saíram às ruas, em todo o país, vestindo preto, com
os rostos pintados com verde e amarelo, bradando pela saída do Presidente. Era
o domingo negro, como ficou sendo conhecido, protagonizado pelos cara-pintadas.
Em 29 de dezembro, apesar de ter apresentado o pedido de
renúncia para evitar ser impedido pelo Parlamento, Collor teve seu processo de impeachment
votado e aprovado. Ficaria impedido de se candidatar novamente a qualquer cargo
público por 8 anos. Itamar Franco assumiria a Presidência da República no período
de 29 de dezembro de 1992 a 1º de janeiro de 1995, quando passou a faixa
presidencial para seu sucessor.
1994/1998
Em 3 de outubro, Fernando Henrique Cardoso venceu, no
primeiro turno, Luiz Inácio Lula da Silva, na corrida presidencial. O sociólogo
teve, em seu favor, o fato de ter sido o responsável pelo Plano Real, durante o
governo Itamar. Foi o Ministro da Fazenda que contabilizou o feito de controlar
a inflação. Em 1998, foi reeleito, também no primeiro turno.
Já o Distrito Federal não viveu esse período com muita
tranquilidade. Em 1994, elegeu um professor para assumir o papel de Governador:
Cristovam Buarque, que tomou posse em 1995. Apesar de todo o investimento em projetos
educacionais que protagonizou, em 1998, o governador enfrentou uma greve de
professores forte. Uma crise de identidade se instalara então: um professor alçado ao cargo de governador, assessorado
por antigos líderes do Sindicato dos Professores, via-se no embate com a
categoria docente, liderada agora por representantes que, outrora,
combatiam o movimento sindical...
Essa parte da lição acho que ainda não conseguimos compreender em sua complexidade e trama de contrações...
Essa parte da lição acho que ainda não conseguimos compreender em sua complexidade e trama de contrações...
No segundo semestre de 1998, Cristovam Buarque não foi
reeleito, tendo perdido o pleito para dar espaço ao já velho conhecido Joaquim
Roriz, que voltaria para conduzir o GDF por mais dois mandatos consecutivos, a
despeito de todas as polêmicas em torno de suas gestões.
Ao todo, Joaquim Roriz governou o Distrito Federal por quatro
mandatos.
2000
No primeiro semestre de 2000, iniciei meu curso de
Doutorado em Sociologia. A turma era grande, marcada pela presença de
intelectuais e militantes políticos, orientados por convicções marxistas. Meus colegas
não descansavam no enfrentamento ao professor de Teoria Sociológica, defensor entusiasta
de ideias neoliberais, e crítico feroz ao velho Marx, cuja obra lera, completa,
em alemão.
As posições do sociólogo que ascendera ao posto de Presidente
da República eram sempre evocadas, em discussões inflamadas. Aquelas discussões
sinalizavam que talvez já se aproximassem os tempos quando o líder sindicalista
já teria barganhado o suficiente com os segmentos econômicos e políticos que
definem os rumos do país, para, finalmente, se eleger pelo voto direto e ser conduzido
ao cargo máximo do Poder Executivo. O que viria a acontecer em 1º de janeiro de
2003, depois de ter vencido José Serra, candidato apoiado pelo então presidente
Fernando Henrique Cardoso, que fora também seu Ministro.
Em sua campanha, Lula apresentou um discurso menos
inflamado, mais aberto a negociações. Parecia ter amadurecido a capacidade para
conquistar a confiança tanto da população quanto dos poderes econômicos.
2003
As árvores ao lado do prédio onde eu morava ainda eram
jovens, e não tinham alcançado o quarto andar. Por isso, da janela da sala era
possível avistar o movimento do Eixão, o Eixo Rodoviário que corta a cidade
correndo de Norte a Sul. No dia 1º de janeiro, ficamos no plantão, aguardando o
momento quando passaria por ali a comitiva conduzindo Luiz Inácio Lula da Silva
para tomar posse como Presidente eleito pelo voto popular. Havia movimentação
em toda a cidade. Uma comoção pairava no ar, semelhante à que levou o menino a
me abraçar longamente no estacionamento do Supermercado Panelão, nos idos de 1989.
O líder sindical, finalmente, tornara-se Presidente da República.
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