Continuo observando o casal de quero-queros. Não chega a
ser uma observação sistemática, mas tem alguma regularidade. E por isso mesmo,
já pude testemunhar momentos inusitados na vida das duas criaturinhas.
Da última ninhada, nasceram 3 filhotes. Mal nasceram, e
andavam correndo pelo asfalto do estacionamento. Quase fiquei aflita com a
visão. Já no dia seguinte, as crias estavam subtraídas em um. Os outros dois
andaram, por vários dias, correndo entre a grama: pequenas bolinhas de penugem equilibrando-se
sobre pernas muito longas e ágeis. Mas logo encontrei apenas um ainda vivo -
era o mais forte, mais resistente. O pequeno sobreviveu a um evento, na
universidade, que ocupou todo o estacionamento ao lado de onde eles vivem. Resistiu
à chuvarada, e ao calor. Suas penugens estavam já mais escurecidas, e cheguei a
pensar que ele conseguiria atravessar o período mais crítico para os filhotes,
e colocar-se adolescente. Enganei-me.
Ontem, no final da tarde, presenciei cena que me comoveu.
Próxima ao poste de luz, a fêmea emitia sons que chamavam o pintinho, e andava
em círculos, com as penas um pouco arrepiadas. Inicialmente, não pude ver o
filhote. Mas ouvi-lhe o piado muito fraco, agudo, como gemidos quase sussurrados.
Então avistei, entre a grama, o pequeno corpo vacilante, já sem conseguir se por
em pé. A cabeça mal erguia-se, no piado, e o bichinho sumia, caído no chão. O
macho voava a pequena distância, em fúria, afastando qualquer outra ave que se
aproximasse - pombos, almas de gato, bem te vis - exceto as vizinhas corujas
buraqueiras, testemunhas instaladas em seus observatórios. Algumas vezes, a
fêmea deitou-se sobre a cria, pipilando para ela, chamando para si a fagulha de
vida que ainda parecia queimar, ali.
Hoje, pela manhã, encontrei os dois andando, ali perto do
poste de luz. Piavam ainda como a chamar a cria. Estavam mais irritados do que
de costume. À tarde, um deles bebia água numa possa distante, e o outro andava
no extremo oposto ao gramado. Fui até as proximidades do poste, e pude ver o
pequeno cadáver. Logo o casal percebeu-me. Ambos vieram em ataque em minha
direção. Retirei-me, enquanto eles gritavam, nas cercanias do corpo. Depois, a
fêmea emitiu um piado que eu ainda não ouvira, e ofereceu-se à cópula.
Não quero incorrer no equívoco de antropomorfizar o
comportamento das aves. Não vou imaginar o sentimento de perda que pudesse ter se
abatido sobre eles. Tampouco pensarei nas relações paternais e maternais com
suas crias, os vínculos de afeto, etc., atribuindo-lhes alguma humanidade nos
modos de instalar-se no mundo. O que a observação dessas aves em sua labuta tem
me ensinado é que, na arrogância humana, interpretamos e atribuímos explicações
às coisas do mundo, sem sequer nos darmos conta do que se passa ao nosso lado.
Sem termos competência de compreender a exata dimensão de eventos fortes como
esse, ali, ao alcance da vista e da mão, mas que me escapa: escapa como se
escapa o último rebrilho de vida ao corpo do último filhote da ninhada mais
recente daquele casal de quero-quero.
Toda vez que me ponho a observá-los, penso no mistério de
sermos e estarmos aqui: nós, eles, e todas as demais formas de vida, sabidas
(em bem menor número) e não sabidas (estas, em número não sabido, sequer imaginado...)
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