quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

um pequeno funeral



Continuo observando o casal de quero-queros. Não chega a ser uma observação sistemática, mas tem alguma regularidade. E por isso mesmo, já pude testemunhar momentos inusitados na vida das duas criaturinhas.

Da última ninhada, nasceram 3 filhotes. Mal nasceram, e andavam correndo pelo asfalto do estacionamento. Quase fiquei aflita com a visão. Já no dia seguinte, as crias estavam subtraídas em um. Os outros dois andaram, por vários dias, correndo entre a grama: pequenas bolinhas de penugem equilibrando-se sobre pernas muito longas e ágeis. Mas logo encontrei apenas um ainda vivo - era o mais forte, mais resistente. O pequeno sobreviveu a um evento, na universidade, que ocupou todo o estacionamento ao lado de onde eles vivem. Resistiu à chuvarada, e ao calor. Suas penugens estavam já mais escurecidas, e cheguei a pensar que ele conseguiria atravessar o período mais crítico para os filhotes, e colocar-se adolescente. Enganei-me.

Ontem, no final da tarde, presenciei cena que me comoveu. Próxima ao poste de luz, a fêmea emitia sons que chamavam o pintinho, e andava em círculos, com as penas um pouco arrepiadas. Inicialmente, não pude ver o filhote. Mas ouvi-lhe o piado muito fraco, agudo, como gemidos quase sussurrados. Então avistei, entre a grama, o pequeno corpo vacilante, já sem conseguir se por em pé. A cabeça mal erguia-se, no piado, e o bichinho sumia, caído no chão. O macho voava a pequena distância, em fúria, afastando qualquer outra ave que se aproximasse - pombos, almas de gato, bem te vis - exceto as vizinhas corujas buraqueiras, testemunhas instaladas em seus observatórios. Algumas vezes, a fêmea deitou-se sobre a cria, pipilando para ela, chamando para si a fagulha de vida que ainda parecia queimar, ali.

Hoje, pela manhã, encontrei os dois andando, ali perto do poste de luz. Piavam ainda como a chamar a cria. Estavam mais irritados do que de costume. À tarde, um deles bebia água numa possa distante, e o outro andava no extremo oposto ao gramado. Fui até as proximidades do poste, e pude ver o pequeno cadáver. Logo o casal percebeu-me. Ambos vieram em ataque em minha direção. Retirei-me, enquanto eles gritavam, nas cercanias do corpo. Depois, a fêmea emitiu um piado que eu ainda não ouvira, e ofereceu-se à cópula.

Não quero incorrer no equívoco de antropomorfizar o comportamento das aves. Não vou imaginar o sentimento de perda que pudesse ter se abatido sobre eles. Tampouco pensarei nas relações paternais e maternais com suas crias, os vínculos de afeto, etc., atribuindo-lhes alguma humanidade nos modos de instalar-se no mundo. O que a observação dessas aves em sua labuta tem me ensinado é que, na arrogância humana, interpretamos e atribuímos explicações às coisas do mundo, sem sequer nos darmos conta do que se passa ao nosso lado. Sem termos competência de compreender a exata dimensão de eventos fortes como esse, ali, ao alcance da vista e da mão, mas que me escapa: escapa como se escapa o último rebrilho de vida ao corpo do último filhote da ninhada mais recente daquele casal de quero-quero.

Toda vez que me ponho a observá-los, penso no mistério de sermos e estarmos aqui: nós, eles, e todas as demais formas de vida, sabidas (em bem menor número) e não sabidas (estas, em número não sabido, sequer imaginado...)



Nenhum comentário:

Postar um comentário