terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Amigos de quem não nos esqueceremos

Para Carla, Prof. J. Bamberg, e Rutinha,
 que não dispensa, por nada,
 uma tarde de brincadeiras com seus amigos cães.


Eu ficava sentada no portão da minha casa e cumprimentava os passantes que se divertiam com a solicitude daquela moleca de 4 anos de idade. Entre os passantes, estava D. Gegé a quem, um dia, confessei que queria muito ganhar um cachorrinho. Ela não se fez de rogada, e pouco tempo depois, trouxe até a nossa casa um filhotinho a quem ela chamava de Ferrinho. Era feio, como era feio! Muito barrigudo, as pernas muito finas, quase não conseguia parar em pé. Não havia muita esperança de que o pobre vingasse. E vingou. Bem cuidado, logo pôs-se animado e até dado a pequenas valentias. Foi ficando lindo: vermelho com umas manchas brancas grandes. Batizamos de Play Boy, a quem D. Maura, que trabalhava em nossa casa na fazenda, não conseguindo pronunciar as palavras em língua estrangeira, chamava de Três Bola. E ele atendia, todo faceiro.

Play Boy tornou-se um cachorro grande, pelo sedoso, companheiro, engraçado, manso e atento ao mesmo tempo. Capaz de separar brigas de galinhas sem machuca-las. Ajudava o trabalho no campo, relacionando-se com os animais sem oferecer nenhum risco. Adorava comer abacate e vergamota. Durante longas horas do dia, distraia-se disputando com o Fiel, seu companheiro no quintal, um lugar ao portão de acesso ao quintal menor, da casa. O Fiel era ousado, briguento, nervoso. Metia medo nas pessoas. Play Boy era amigo, brincava, afagava. E também nos defendia, quando necessário.

Quando meu pai morreu, e minha mãe veio embora, eles ficaram lá, vigilantes, cuidando da casa. Imagino quantas vezes tenham saído em disparada, na direção da estrada, esperando pelo nosso retorno. Morreram bem velhos, o Play Boy com 19 anos, o Fiel com 18 – o que parece ser incomum para os cães. Quando eles se foram, eu não estava lá, para despedir-me. Eu também andava às voltas com tantas perdas, que acho que quando me dei conta, eles já não estavam lá. Contaram-me, depois, como tudo aconteceu. Se não sofri de modo mais fundo naquele momento, me ressinto de sua falta no decurso do tempo, como uma ausência que uiva, desde algum ponto recôndito da memória, sem silenciar.

Lembro-me comovida desse meu amigo, sinto-lhe falta do toque no pelo denso e macio, da cara alegre, da boca rosada, do corpão desajeitado correndo pelo campo. Penso nisso, por exemplo, quando ouço, do Prof. J. Bamberg, o relato emocionado sobre seu primeiro grande amigo, o Rizo. Cachorro descarado, diz ele, com o afeto a transbordar da memória, enchendo o peito de saudades fundas, saudades que buscam, em suspiros, uma forma de se extravasar.

A memória do Play Boy, do Fiel, do Riso, são evocadas, aqui, para comungar do vazio que o Zeca deixou na morada/vida da minha querida Carla.

Não tenho dúvidas de que esses seres cumprem um papel muito mais importante em nossas vidas do que temos sido capazes de admitir, do alto da arrogância de nossa pretendida humanidade. Devemos a eles o afeto incondicional. Devemos a eles a possibilidade de aprender que amizade e companheirismo deve estar além de qualquer sentimento mesquinho, pequenos egoísmos, migalhas de poder. Se podemos, em alguma medida, sermos um pouco melhor em nossa natureza, devemos, em muito, à possibilidade de convivência com essas criaturas.

Imagino o Play Boy, o Fiel, o Bright, o Xerife, o Riso divertindo-se, correndo uns atrás dos outros, indo ao encontro do Zeca, no céu dos cachorros. Aliás, ocorre-me, agora, que o céu dos cachorros deve ser muito, mas muito mais divertido que o céu dos homens!




Um comentário:

  1. Belo texto,como o de sempre!...Sim,há um 'céu de cachorros',tenho certêza,pelas razões mais lógicas,e a primeira é de que o Amor abençoa e santifica.Em especial,se saudável e vivo de alegrias,até nas situações mais dramáticas,nas pêrdas e grandes ausências... O meu queridíssimo Rízo - era escrito bem assim na sua coleira ganha de alguma puta,sua amiga.Pois,sim, êle fugia todo carnaval,p'rum puteiro lá perto da beira do Itapicuru-açu,p'ra lá da Estação do trem,voltando p'ra casa só na quarta-feira de cinzas,todo ano,sem perder um,onde era tratado como rei e fantasiado,pintado e entupido de purpurinas nos pêlos.Lembro de uma vez que o cínico voltou com um cone de palhaço,com um guizo em cima,amarrado em elástico,na sua cabêça,de rajado-caatingueiro-bôca-prêta e rabo-fino, por dias e dias...Ninguém conseguia tirar o tal troço.Seguimos o cara,e descobrimos a farra,mas não fizemos nada além de rirmos muito com a estória!...Isso é que era um cachorro-vagabundo,de verdade!...Rizo,meu cachorro!...- me acompanhou até a nossa saída,de trem,lá do sertão sêco e a consequente vinda para 'a Baía'. Disse-me um tio que êle nos seguiu às carreiras, até... Depois voltou para a casa do meu Vô Pai-véi,e,de lá para a sua rotina já conhecida. Mas,nos re-encontrávamos nas férias e nas eleições,quando os meus pais voltavam para votar,e eu,para matar saudades..."...Sim,êle não morreu! 'Se encantou'... Vive lá no 'céu dos cachorros',ára...",me disse lá um dia,a minha queridíssima Vó Anna,índia velha tuxá-kirirí,de sabença conhecida por todos. O Rizo vive nas minhas memórias e lembranças,para sempre !...

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