sábado, 7 de dezembro de 2013

Duas histórias jassídicas sobre a transmissão e a renovação

In Pedagogia profana, de Jorge Larrosa

Mas, mesmo assim, o estudo não é possível. Como todo o tempo, com todo o silêncio, com toda a atenção concentrada, o estudo ainda não é possível. Com toda a melancolia, com todo o mau gênio, com toda a aspereza, o estudo ainda não é possível. No espaço sem marcas do labirinto e no tempo sem intervalos da madrugada, o estudo ainda não é possível. O estudante, para estudar, ainda necessita fazer um lugar para si, para habitá-lo e demorar-se nele. Ainda necessita encontrar um lugar para se perder.

Na Casa do Estudo, estão todos os livros. Alinhados, ordenados, classificados. Todos os livros e cada livro em seu lugar. E todos à mão, perfeitamente disponíveis. Na Casa do Estudo vive-se com a segurança de que os livros, convenientemente reproduzidos e transmitidos, cuidadosamente editados e anotados, estão aí, num tipo de plenitude sem sobras, que é, ao mesmo tempo, a plenitude sem falta da cultura, a prova palpável de sua imensa generosidade. Mas o estudante sente vertigem diante dessa totalidade tão plena. Houve um momento em que também se sentiu feliz diante da presença firme e segura de todos esses livros. Também sentiu aquilo que há de prestígio neles, de segurança, de promessa. Também se deixou seduzir por esse inventário bem ordenado dos produtos da cultura, por todas essas certezas alinhadas. Mas um dia sentiu-se afogado. E, pela primeira vez, sentiu que os livros, na sua generosidade, não deixavam lugar para ele. Como iria o estudante ter um lugar nesse espaço no qual tudo já está escrito?

Na Casa do Estudo, onde estão todos os livros, também se fala constantemente nos livros. Os-que-conhecem-os-livros falam e falam, sem cessar, dos livros. E na Casa do Estudo existe quase tantos sábios quanto estantes. Junto a um livro sempre existe alguém que-conhece-o-livro. Por isso, os livros sempre estão previamente lidos, esclarecidos, iluminados. Os livros não têm margens, ou as margens estão cheias de palavras sábias que saturam o texto. Não há espaços entre as linhas, ou os espaços já foram ocupados pelos comentários sábios. Não há vazios entre as palavras, entre as letras. E o estudante pergunta-se como fazer para converte os livros em desconhecidos, como devolver a eles seu mistério. Porque, caso contrário, onde o estudante iria encontrar um lugar?

Um dia, há muitos anos, Baal-Shen-Tov deteve-se à entrada de certa Casa de Estudo famosa e negou-se a transpô-la. “Não, eu não posso entrar aqui”, disse ele. “Tudo está cheio, aqui dentro. De parede a parede e do chão ao teto, tudo está cheio das palavras sábias e das orações piedosas que aqui se pronunciaram. Onde eu poderia encontrar um lugar para mim?” E vendo que aqueles que o acompanhavam o olhavam sem compreendê-lo, disse: “De todas as palavras ditas pela beira dos lábios daqueles que rezaram e que ensinaram, nem uma só subiu ao céu. Nem uma só palavra foi levada daqui por um alento do coração. Por isso, tudo que foi dito permaneceu na Casa do Estudo. E a Casa do Estudo terminou por estar cheia, de parede a parede, do chão ao teto” (BUBER, M. Les recits hassidiques. Paris: Editios du Rocher, 1980)

Na Casa do Estudo só falam Os-que-sabem, e por isso suas palavras são sábias. Muitas palavras sábias foram pronunciadas na Casa do Estudo. Demasiadas palavras. Demasiadas palavras sábias que se negam a desaparecer. Demasiadas palavras que pesam, que se mantêm presas ao solo, que ocupam todos os rincões, que preenchem todos os vazios, que cobrem todas as superfícies. Na Casa do Estudo, onde falam Os-que-sabem, onde as palavras pesam, onde as palavras não querem desaparecer, não há lugar para o estudante. Onde poderia o estudante encontrar um lugar se tudo já está dito, se já se saber tudo, se tudo já está convenientemente coberto por palavras sábias?

Na Casa do Estudo, as respostas estão órfãs das perguntas que poderiam lhes dar um sentido e fazê-las dançar. Só as perguntas poderiam fazer retroceder a arrogância das respostas. Mas as respostas cobrem todas as perguntas e não são, elas mesmas, perguntas. Só uma resposta que fosse, ela mesma, pergunta, retrocederia o suficiente como que para abrir um espaço para o estudante.

Na Casa do Estudo, as palavras não deixam qualquer silêncio. As palavras enchem todo o silêncio e não são, elas mesmas, silêncio. As palavras estão órfãs desse silêncio em que o estudante poderia encontrar seu lugar.

O peso das palvras é sua insignificância. E as palavras d’Os-que-sabem são insignificantes porque foram pronunciadas da beira dos lábios. Por isso, só podem ser recolhidas pela beira das orelhas. Nenhum alento do coração envolve as palavras e as impulsiona para fora. As palavras, insignificantes, não têm alma. Como receber palavras sem alma? As palavras desanimadas não podem ser recolhidas porque ninguém pode se recolher nelas. Como poderia alguém se recolher nelas se elas não mantiveram o silêncio, se não mantiveram as perguntas, se elas não deixam nenhum vazio?

Mas o contrário da insignificância não é a plenitude da significação. As palavras que enchem a Casa do Estudo são insignificantes, precisamente, pelo peso arrogante da plenitude de sua significação. Por isso, a leveza das palavras não é o significado, mas o fracasso de seu significado. E é aí no fracasso onde o estudo pode demorar-se. O estudo só pode surgir quando as respostas não saturam as perguntas, senão quando são, elas mesmas, perguntas; quando as palavras não preenchem o silêncio, senão quando são, elas mesmas, silêncio.

As palavras, para que abram um espaço, têm de ser pronunciadas com um alento do coração. Só assim poderão subir ao céu. Como a fumaça. Só com o fogo, impulsionado pelo fogo, o sacrifício sobre ao céu. Aquilo que, se queimando, se converte em fumaça, sobe ao céu. E, em seu desaparecimento, em seu sacrifício, em seu fracasso, as palavras queimadas que soberm ao céu deixam um espaço em que o estudante pode inscrever seu próprio estudo.

O estudante só pode encontrar um lugar no desaparecimento das palavras sábias: no mesmo instante em que essas palavras, fracassadas em sua pretensão significativa, incendidadas por um alento do coração, convertem-se em fumaça e, mais leves do que o ar, voam para o alto. Por isso, se as palavras não têm esse alento que as faz fracassar e arder, o estudante deve produzi-lo. O estudante deve queimar as palavras sábias para que, como a fumaça, desapareçam da Casa do Estudo e deixem nela um vazio no qual ele se perca.

Muitos anos depois, o rabino Nahman de Braslav, bisneto de Baal-Chem-Tov, ia partir em viagem. Tinha trinta e sete anos e sabia que ia morrer. Ordenou ao seu secretário que terminasse de copiar o livro que acabara de escrever. Alguns meses depois, mandou-o queimar o livro escrito pela própria mão e também a cópia. O livro converteu-se em “o livro queimado”. E assim, queimado, convertido em fumaça, passou à tradição jassídica. R. Natham, seu secretário, conta que um dia os discípulos entraram na sua casa e o encontraram com uma folha de papel na mão. Na folha, sua escrita. Ele voltou-s epara eles e lhes disse: “muitos são os ensinamentos desta página e muitos são os mundos que se alimentam de sua fumaça”. E aproximou a folha à vela. Entre as anotações do tabino morto, foram encontradas várias que falavam da necessidade de queimar os livros. Havia uma que dizia: “Às vezes, conhece um ensinamento [...], mas deve guarda-lo em segredo e não o revela. Às vezes, inclusive, não o escreve. Às vezes, o escreve e queima-o imediatamente. Na verdade, se esse ensinamento tivesse sido escroto, seria um livro e esse livro teria seu lugar no mundo [...]. mas é um bem para o mundo que esses ensinamentos e esses livros sejam escondidos e queimados”. (OUAKNIN, M. A. Le livre brûlé. Paris: Lieu Commun, 1990).

A palavra do sábio, uma vez introduzida no mundo, deve ser subtraída do mundo, deve ser retirada do mundo pelo fogo. O sábio pode escrevê-la, mas não dizê-la. Mas isso seria manter um segredo fácil e presunçoso, de modo que o poder do sábio ficaria ainda mais fortalecido. O sábio pode não dizê-la e tampouco escrevê-la. Mas assim, não faz aparecer o espaço vazio: o nada ainda não é o vazio. O sábio pode, por fim, escrevê-la e queimá-la, escrevê-la para queimá-la. Somente essa alternativa faz aparecer a falta, o espaço, o buraco. Só a fumaça faz aparecer um vazio significativo. Só a fumaça fala da ausência do livro. Entre o livro e o não livro, a fumaça é a retirada do livro, e o vazio que deixa nessa retirada. E se o sábio não queima seu livro, será o estudante quem deverá queimá-lo. Só assim se abrirão margens nas páginas, espaços entre as linhas, espaços em branco entre as palavras e as letras. Somente num livro queimado o estudante pode estudar.


Elogio do fogo
Uma inquietude rodeia o estudante. Quando conseguiu vencer a passividade da sua melancolia, o estudante parece muito agitado. Sua mesa vai se enchendo de livros abertos. O estudante levanta-se e volta a se sentar, movimenta compulsivamente as pernas, passa de um livro a outro, escreve e torna a ler, às vezes fala em voz alta, atropela palavras sem sentido. Sua respiração se faz mais intensa, seu ritmo cardíaco acelera-se, seus perfis tornam-se agudos e se fazem quase transparentes, de tão afilados; quase se diria que, agora, a lâmpada produz mais luz. A que se deve essa agitação súbita, essa atividade frenética? O estudante está queimando as palavras sábias d’os-que-sabem e está prendendo fogo nos livros. A Casa do Estudo está se incendiando. As palavras queimadas já sobem ao céu, entre os livros já começam a se abrir margens, brancos, espaços vazios. Ainda não amanhece, mas uma cor dourada torna mais cinza o cinza do horizonte. Entre os atalhos do labirinto escutam-se risos. No meio do fogo, rodeado de fumaça, o estudante começou a estudar.




Um comentário: