Entre a vegetação ressecada do cerrado, a sucuri deu um
bote certeiro sobre a presa, envolveu-a com o corpo de mais de 2m de
comprimento, e foi engolindo devagar. Depois ficou ali, estendida,
preparando-se para o longo processo de digestão do alimento que a nutriria por
um bom período. Parecia o desenho do Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry: mais fina nos extremos, e
bem expandida no centro.
Azar da presa, sorte da sucuri. Nem tanto assim...
Alguns animais humanos cruzaram o caminho da cobra,
enquanto ela, quase inerte, concentrava esforços e energia no desfazimento do
corpo da presa em seu estômago. A primeira reação foi de susto e medo. A sucuri,
também chamada de anaconda, habita o imaginário como um animal assustador. Já foram
feitos filmes nos quais ela era a principal vilã: forte, inteligente e
implacável, capaz de perseguir os invasores de sua floresta. Mas também foram
picados pela curiosidade: de que natureza seria a vítima em seu ventre? Então ocorreu
que talvez pudesse ser uma criança, ou um adolescente.
Essa pergunta forneceu o argumento necessário para que providenciassem
o que queriam fazer de fato, desde o primeiro momento: determinados a matar a
cobra, e lhe abrir o ventre, chamaram a polícia, para amparar, do ponto de
vista legal, sua decisão. Afinal, havia a suspeita de que uma pessoa estivesse
ali dentro!
Mas não era suficiente a presença da polícia: a equipe de
um jornal televisivo também foi convocada. Os editores, farejando notícia que
pudesse prender a atenção do público, deslocou uma unidade para o local, e
passou a transmitir, ao vivo, cada passo da operação.
O locutor, do estúdio, começou a fazer uma enquete. Queria
saber a opinião dos demais jornalistas, e também de ouvintes, sobre o que
estaria na barriga da sucuri. E repetia a história várias vezes, anunciando a
revelação do mistério no próximo bloco.
Para matar a cobra, quebraram-lhe a nuca. Mesmo sem
esboçar maiores reações, sua estrutura corporal forte ofereceu resistência, e
não foi sem dificuldade que ela foi desnucada. Então se prepararam para cortar
o ventre. Mas as diversas ações foram devidamente dirigidas pelos repórteres. As
opiniões divergiam: alguns achavam que a presa podia ser uma capivara, ou um
veado. Mas podia ser uma criança, ou um adolescente.
A certo ponto do programa, não mais se falou na sucuri. Passou-se
um bloco inteiro sem referência à cobra. Imaginei que, ante a possibilidade de
haver uma pessoa no seu ventre, trataram de confirmar, primeiro, a natureza da
vítima, para depois retornar o assunto ao ar.
Efetivamente, na última parte do programa, voltaram com
toda a carga ao assunto, com as imagens já editadas. No entanto, a cena era
conduzida como se ao vivo fosse.
Minha mãe permaneceu, todo o tempo, aguardando pela
informação. Aos poucos, foi se irritando com a demora. Mas não se afastou, pois
a curiosidade impunha-se à impaciência. Enquanto isso, o locutor anunciava a
elevação dos índices de audiência, e voltava à história da sucuri morta com sua
presa no ventre.
Encerrando o programa, finalmente a sequência em que a
barriga foi aberta, com a imagem borrada, apareceu, finalmente, a capivara
morta. Seguiram-se os créditos do telejornal.
A capivara, morta, não foi salva. A sucuri foi morta para
nada. Os protagonistas da ação apenas ganharam alguns minutos de fama num telejornal
de abrangência local. A emissora de televisão foi a única que lucrou, com o acréscimo
de vários pontos na audiência.
Essa, a sociedade do espetáculo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário