sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A sucuri, sua presa e a sociedade do espetáculo


Entre a vegetação ressecada do cerrado, a sucuri deu um bote certeiro sobre a presa, envolveu-a com o corpo de mais de 2m de comprimento, e foi engolindo devagar. Depois ficou ali, estendida, preparando-se para o longo processo de digestão do alimento que a nutriria por um bom período. Parecia o desenho do Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry: mais fina nos extremos, e bem expandida no centro.

Azar da presa, sorte da sucuri. Nem tanto assim...

Alguns animais humanos cruzaram o caminho da cobra, enquanto ela, quase inerte, concentrava esforços e energia no desfazimento do corpo da presa em seu estômago. A primeira reação foi de susto e medo. A sucuri, também chamada de anaconda, habita o imaginário como um animal assustador. Já foram feitos filmes nos quais ela era a principal vilã: forte, inteligente e implacável, capaz de perseguir os invasores de sua floresta. Mas também foram picados pela curiosidade: de que natureza seria a vítima em seu ventre? Então ocorreu que talvez pudesse ser uma criança, ou um adolescente.

Essa pergunta forneceu o argumento necessário para que providenciassem o que queriam fazer de fato, desde o primeiro momento: determinados a matar a cobra, e lhe abrir o ventre, chamaram a polícia, para amparar, do ponto de vista legal, sua decisão. Afinal, havia a suspeita de que uma pessoa estivesse ali dentro!

Mas não era suficiente a presença da polícia: a equipe de um jornal televisivo também foi convocada. Os editores, farejando notícia que pudesse prender a atenção do público, deslocou uma unidade para o local, e passou a transmitir, ao vivo, cada passo da operação.

O locutor, do estúdio, começou a fazer uma enquete. Queria saber a opinião dos demais jornalistas, e também de ouvintes, sobre o que estaria na barriga da sucuri. E repetia a história várias vezes, anunciando a revelação do mistério no próximo bloco.

Para matar a cobra, quebraram-lhe a nuca. Mesmo sem esboçar maiores reações, sua estrutura corporal forte ofereceu resistência, e não foi sem dificuldade que ela foi desnucada. Então se prepararam para cortar o ventre. Mas as diversas ações foram devidamente dirigidas pelos repórteres. As opiniões divergiam: alguns achavam que a presa podia ser uma capivara, ou um veado. Mas podia ser uma criança, ou um adolescente.

A certo ponto do programa, não mais se falou na sucuri. Passou-se um bloco inteiro sem referência à cobra. Imaginei que, ante a possibilidade de haver uma pessoa no seu ventre, trataram de confirmar, primeiro, a natureza da vítima, para depois retornar o assunto ao ar.

Efetivamente, na última parte do programa, voltaram com toda a carga ao assunto, com as imagens já editadas. No entanto, a cena era conduzida como se ao vivo fosse.

Minha mãe permaneceu, todo o tempo, aguardando pela informação. Aos poucos, foi se irritando com a demora. Mas não se afastou, pois a curiosidade impunha-se à impaciência. Enquanto isso, o locutor anunciava a elevação dos índices de audiência, e voltava à história da sucuri morta com sua presa no ventre.

Encerrando o programa, finalmente a sequência em que a barriga foi aberta, com a imagem borrada, apareceu, finalmente, a capivara morta. Seguiram-se os créditos do telejornal.

A capivara, morta, não foi salva. A sucuri foi morta para nada. Os protagonistas da ação apenas ganharam alguns minutos de fama num telejornal de abrangência local. A emissora de televisão foi a única que lucrou, com o acréscimo de vários pontos na audiência.

Essa, a sociedade do espetáculo.




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