Eu tinha cinco anos, quando recebi a primeira
correspondência: um postal enviado pelo Padre Wenceslau, que rezou a missa de
meu batismo. Por isso eu o chamava de padrinho, e ele me chamava de afilhada.
Algum tempo antes, minha mãe postara para ele uma carta que eu escrevera, não
sem a preciosa ajuda dela. O postal vinha em resposta. Notícias longínquas, de
algum lugar cujas feições eu não podia imaginar, para onde ele se transferira,
após ter sido pároco em nossa pequena cidade durante muito tempo.
No postal ele falava de sua surpresa ao receber minha
carta, e de sua alegria ao ler as palavras escritas pela minha própria mão. Na estampa,
uma coruja usando o capelo, aquele chapéu usado em formaturas. A figura da
corujinha era realizada com um efeito especial que dava a impressão de
profundidade e movimento: duas imagens sobrepostas em filetes muito delgados, a
enganar os olhos do observador. Quase um holograma. O postal, de alguma forma,
foi meu primeiro diploma. E cunhou, também, embora não de modo fatalista, nem
dramático, um caminho a seguir: o da formação e atuação acadêmica.
Enveredei pelas paisagens da educação, da arte, da
pesquisa, da docência, dos livros, das fotografias, do cinema... Professora universitária,
o campus onde atuo é habitado por uma
comunidade famosa, comentada além de suas fronteiras: os macacos-prego que
vivem na pequena reserva florestal, fragmento da mata atlântica a resistir
bravamente ante o avanço da cidade. Os macacos invadem a vida acadêmica de
estudantes, professores e quantos por ali se aventurarem. Roubam lanches e
almoços, mexem nos papeis à procura de guloseimas, dependuram-se nas janelas durante
conferências importantes, irreverentes que são.
Mas fui seduzida mesmo por outra comunidade, mais
silenciosa, profundamente observadora, e capaz de ver aquilo que não somos
capazes, sobretudo porque preparadas para ver na ausência da luz: as corujas-buraqueiras.
Tenho acompanhado algumas famílias, observando os
filhotes com penugem ainda muito clara, arredios, prontos a deslizar para
dentro da toca a qualquer movimento minimamente ameaçador. E os adultos, sempre
por perto, observando-me a observar, emitindo alguma rezinga por vezes, quando
sentem seus territórios invadidos além das fronteiras mínimas de segurança.
Na verdade, as corujas, bem como os macacos, os
quero-queros, as curicacas, e outros representantes da flora e da fauna do
cerrado já estavam lá quando a universidade chegou, e depois a cidade cresceu em
torno, com seus restaurantes, as lojas, os alojamentos de estudantes, os bares,
o movimento de carros, ônibus, os grandes eventos, os grandes
estacionamentos... Por outro lado, encanto-me registrando o encontro metafórico
daquela que é o símbolo da sabedoria, a coruja, com a casa destinada à formação para o conhecimento, qual seja a universidade: esta última, construída nos mesmos terrenos desde há quanto tempo habitados pela primeira! (é claro: um encontro descrito desde o ponto de vista estritamente antropocêntrico. Qual seria, então, a descrição feita pela coruja?)
Não estou certa de que a comunidade universitária
esteja muito atenta a isso. Ao contrário: com frequência suas construções têm
ameaçado ninhos e ninhadas, feito desmoronar tocas, produzido barulho em
excesso a ponto de estressar as comunidades. Mas elas resistem, adaptam-se
rapidamente, e a população se amplia. Enfrentam as máquinas, não temem os
animais da espécie humana, convivem com os quero-queros, caçam insetos e animais
de pequeno porte.
Integram a vida universitária, ao seu modo. Ao seu modo,
testemunham a paisagem se transformar à sua volta, sem perder um detalhe, sem
se perder nela. Talvez por serem sábias, por verem mais e além, por perceberem
o mundo quando ainda prevalecem as sombras.
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