Corriam os anos 80. Naqueles tempos, eu participava de grupos experimentais de dança, teatro, desenho, pintura, entre tantos. Para isso, não esperávamos por editais de financiamento – eles nem existiam. Éramos movidos pelo desejo de jogar com os elementos das linguagens, com as inquietações, na ventura de encontrar possibilidades de expressão. Nem sempre o resultado satisfazia, ou constituía alguma coisa mais relevante. Mas os processos eram extremamente interessantes, e aprendia-se muito. Aprendia-se quase tudo, desde as negociações coletivas, ética do trabalho em grupo, produção e viabilização prática de formulações estéticas, construção de metáforas que dessem conta das tensões político-sociais daqueles tempos, trânsitos, poéticas.
Num desses grupos, eu o conheci. Era jovem, acabara de concluir a graduação, e logo foi aprovado num concurso para ser professor na universidade. Miúdo, pele clara, cabelo esvoaçante, provocava suspiros entre as meninas por onde passava. Foi convidado a integrar um pequeno grupo experimental que havíamos montado com a intenção de montar cenas e performances breves para fazer inserções/intervenções em espaços diversos.
Trabalhávamos nos sábados pela manhã. Mas o grupo não teve vida muito longa, sequer chegamos a fechar alguma cena. Tínhamos muitas ideias, mas não conseguimos dar-lhes forma cênica, corporificá-las. Do processo, ficou a amizade, e algumas imagens provocadas pelos projetos não realizados.
Algum tempo depois de terminado o grupo, o reencontrei na festa de um casal de amigos em comum. Ele, professor na universidade, gracioso. As meninas, na festa, fazendo uso das artimanhas de que dispunham para se aproximarem dele. O sábado quente foi a deixa para se beber muita cerveja, em alguns casos misturada a caipirinha. Eu me encharquei em suco de uva. No final da tarde, quando decidi vir embora, ele me pediu carona. Para as concorrentes, aquele foi um sinal de escolha por parte dele, ainda que eu não estivesse na disputa.
Embarcados no meu fusca amarelo limão, perguntei-lhe onde queria que eu o deixasse. Que fôssemos até minha casa, de lá ele seguiria, me disse. Subiu até meu apartamento, para beber água. Quando voltei da cozinha, estava mal acomodado nas almofadas, sobre o colchonete, a um canto da sala. Dormia profundamente. E roncava, como roncava!
Diverti-me imaginando a expectativa das meninas, ante a cena que tinha à minha frente.
No dia seguinte, acordou descomposto, com dores pelo corpo. Foi a última vez que o vi.
Recentemente, soube que ele integra a equipe de mentores e produtores de um filme documentário cuja temática é de meu interesse. Quando li a notícia, foi inevitável lembrar o episódio. Procurei mais informações sobre seu percurso, o que tem feito. Continua na universidade, responde por cargo de relativa visibilidade. Ao contrário de muitos dos professores que iniciaram suas carreiras àquela época e acabaram por não fazer mestrado, menos ainda doutorado, ele investiu em sua formação acadêmica. Mas parece não ter tomado gosto pela pesquisa científica mais sistemática: não integra nenhum grupo de pesquisa, sua produção tem natureza mais prática, de conhecimento aplicado.
É possível, mesmo, que hoje ande contando os anos e os dias que faltam para se aposentar...
Roncará, ainda, quando dorme?
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