quarta-feira, 4 de maio de 2011

Da morte



Da morte I
Meu pai estava em coma quando fui contemplada com uma bolsa integral para meus estudos numa escola técnica profissionalizante. Nessa mesma data, ele despertou, e pudemos conversar brevemente ao telefone. Então lhe contei a boa notícia. Ele sorriu, dizendo que não se surpreendia, pois nunca tivera dúvidas quanto à minha capacidade. Essa foi a última vez em que ouvi sua voz.

Da morte II
Embora quase não lhe recorde o rosto, não me esqueço do céu atravessado por revoadas de andorinhas, na tarde cinzenta quando ele esteve em nossa casa. Da porta, eu fiquei magnetizada pelas manobras aéreas dos inumeráveis pássaros, enquanto ele conversava sobre assuntos quaisquer com meu pai e minha mãe. Poucos dias depois, soubemos que fora assassinado numa festa. Ainda hoje, quando ouço seu nome, vem-me à memória a imagem das andorinhas no céu de inverno.

Da morte III
No andar de cima, morava um senhor de poucos amigos, que entrava e saia do prédio quase sem ser notado. Diziam ter lutado na Segunda Guerra Mundial. Morreu sozinho, em casa. Não imagino como se soube do ocorrido. Um dia, ao chegar, me deparei, na calçada, com dois contêineres cheios de livros em alemão: Hegel, Schopenhauer, Kant, Klee... O zelador e o porteiro do prédio, faxineiros, vizinhos, e outros curiosos vasculhavam os quatro cantos do apartamento, à busca de tudo quanto lhes pudesse interessar: objetos em geral, eletrodomésticos. O que sobrou foi descartado como lixo. Livros... muitos livros... Tudo com a autorização do síndico, a quem fora solicitada a gentileza de desocupar o imóvel, para que a embaixada pudesse vendê-lo, a pedido dos poucos familiares residentes na Alemanha.



3 comentários:

  1. A memória é um campo de ruínas psicológicas,
    um amontoado de recordações. (Bachelard via Almandrade)

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  2. ... a imagem de ruínas psicológicas instiga tantas outras imagens...

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  3. ...interessante... A memória 'próxima',tem sido minha 'desafiante',num combate à escuras,onde tateio,apanho,luto com ela,huka-huka,bruta,mas,apesar disso,nosso 'combate' é elegante... Já a 'pregressa',é a minha,sempre, cúmplice,na imensidão de referências,lembranças,impressões as mais diferenciadas e mais longínquas,'lá atrás'...Jogo Capoeira,danço boleros,'arrasto chulas e samba-duro',nessa diversificação,multiplicidade de ausências e presenças,memórias,miríades de tudo...Memória é um diapasão de Vida e de suas nuances,creio mesmo...

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