sábado, 30 de junho de 2012

Discernimentos...


para o Xodó, um gato lindo que habitou minha infância...


Todas as manhãs, eu moía um pouco de milho, para alimentar os pintinhos, sempre numerosos. Mas os frangotes e as galinhas disputavam a quirera com os menores. Estes ficavam sempre em desvantagem no embate. Então minha mãe construiu um cercado de tela, coberto, com uma abertura pequena, rente ao chão, pela qual os maiores não conseguiam passar, mas os pintinhos entravam. Logo eles aprenderam a se alimentar ali. E também as pombinhas, para quem a pequena abertura parecia ter sido feita sob medida. Minha mãe, que achava um desaforo que se moesse quirera para dar aos pombos, colocou o gato em ação. Atenta, quando avistava alguma pomba no cercadinho dos pintinhos, imprimia certo tom reconhecível na voz: “Xodó, Xodó, Xodó, Xodó!”. O gato, de pelos muito brancos e espírito predador, atendia ao chamado. Num piscar de olhos, estava dentro do cercadinho, com a pombinha em suas garras, sem ofender um pintinho sequer. Foi considerado aliado de minha mãe, até o dia em subiu num pé de erva, alcançando uma casinha de João-de-barro, abocanhando o passarinho construtor. Minha mãe fez o flagrante, e deu uma surra no Xodó. Pombinha pode, mas João-de-barro não pode! Como o pobre gato poderia compreender? Na dúvida, melhor fugir...





quinta-feira, 28 de junho de 2012

Eros e Thanatos também vieram tramar à beira dos caminhos




Em 2011, dentro das atividades desenvolvidas na Oficina dos Fios, iniciamos uma ação coletiva, aberta, de intervenção na cerca em torno da matinha, no campus universitário onde trabalho. Os espaços ocupados ficam à margem das calçadas cobertas, por onde transitam as pessoas da comunidade universitária, e demais usuários daquele espaço. Tramas à beira dos caminhos, assim foi batizada a ação.

Desde 2011, venho observando a ação do tempo sobre as primeiras intervenções. Em que consiste essa “ação do tempo”? Imaginava, eu, de um modo quase ingênuo, que poderia enumerar alguns itens sob essa categoria: efeitos das variações climáticas e dos ciclos dia/noite sobre o trabalho, ações de animais de pequeno e pequeníssimo porte (penso nos macacos, em formigas, etc.), e também na ação de pessoas subtraindo peças, objetos (afinal, expostos em espaço aberto, disponíveis em certa medida).

Na medida do tempo passando, as linhas e fitas, os cordões e tecidos foram perdendo o brilho que lhes dava uma vivacidade inicial, mas foram sendo integrados à paisagem. O adventício, inaugural, que ainda não foi incorporado ao seu contexto, tem as feições do estranhamento. Precisa aprender a ser ali. E aprender a ser ali pressupõe, também, certo borramento entre aquilo que diferencia o que chega em relação ao que já está desde antes (desde quando?). Se as tramas perderam o brilho, ganharam feições de pertencimento, tecidas/tramadas na passagem do tempo, das horas, dos dias...

Em 2012, retomamos, com outro grupo, as intervenções, na mesma cerca, adiante. Ao lado dos trabalhos amadurecidos, novos brilhos se instalaram, para iniciar o lento processo de integração ao espaço. Ressalto a alegria que marca esses momentos da ação: fios e tecidos coloridos, conversas, risos, movimento. E o prazer em observar as formas tecidas/bordadas integrando o lugar.

Então me deparei com um novo item a ser incluído no rol dos fatores que intervêm na “ação do tempo”: a ação humana, impaciente, prenhe de afetos, desejos, urgências, precipitando processos, antecipando corrosões (talvez devesse incluir, na lista, um item para animais de grande porte...).

Pois bem, apresento os fatos: poucos dias depois de realizados, quase todos os trabalhos sofreram a ação de algum instrumento de corte agilmente conduzido por mãos passantes. O fio da lâmina deixa marcas pouco orgânicas. Não é rasgo, não é desgaste. Fala de um gesto que não quer esperar, que antecipa um efeito de desfazimento, que interrompe os fluxos aqui, agora. É trama, mas é trama brusca, que vocifera: “Não!”.




Quando nos dispomos a tramar à beira dos caminhos, é preciso lembrar que contaremos com a companhia não apenas de Eros: Thanatos também quer participar...



quarta-feira, 27 de junho de 2012

Beira Mar (Riacho de Areia)



Cantiga popular do Vale do Jequitinhonha, MG, gravada por Dércio Marques, que se foi, hoje, fazer cantorias do lado de lá. Adeus, adeus... saudades...

Beira mar, beira mar novo,
Fui só eu é que cantei
Ô Beira Mar, adeus Dona
Adeus Riacho de Areia
Adeus, adeus
Toma, adeus
Eu já vou m’embora
Eu morava no fundo d’água
E não sei quando eu voltarei
Eu sou canoeiro

Eu não moro mais aqui
Nem aqui quero morar
Ô Beira Mar, adeus Dona
Adeus Riacho de Areia
Adeus, adeus
Toma, adeus
Eu já vou m’embora
Eu morava no fundo d’água
E não sei quando eu voltarei
Eu sou canoeiro

Vou descendo rio abaixo
Numa canoa furada
Ô Beira Mar, adeus Dona
Adeus Riacho de Areia
Adeus, adeus
Toma, adeus
Eu já vou m’embora
Eu morava no fundo d’água
E não sei quando eu voltarei
Eu sou canoeiro

Rio abaixo, rio acima
Tudo isso já andei
Ô Beira Mar, adeus Dona
Adeus Riacho de Areia
Adeus, adeus
Toma, adeus
Eu já vou m’embora
Eu morava no fundo d’água
E não sei quando eu voltarei
Eu sou canoeiro

Procurando amor de longe
Que de perto já deixei
Ô Beira Mar, adeus Dona
Adeus Riacho de Areia
Adeus, adeus
Toma, adeus
Eu já vou m’embora
Eu morava no fundo d’água
E não sei quando eu voltarei
Eu sou canoeiro




terça-feira, 26 de junho de 2012

essa tal de pós-modernidade...



O professor é marxista. Quando fala sobre Marx, seus olhos brilham do mesmo modo que brilham os olhos de alguns crentes em sua fé cristã. E em seu gesto ressoa uma crítica discreta endereçada aos colegas que não compartilham do mesmo entusiasmo em relação ao marxismo. Burgueses, pensa, sem confessar.


A greve foi se espalhando: entre professores, funcionários técnico-administrativos, estudantes. As discussões foram ganhando espaço: educação pública, financiamento da educação, a universidade que queremos, etc. Novas gerações de professores e estudantes, que nunca haviam participado de mobilizações antes, começaram a construir novas aprendizagens.


O professor marxista, que não declarou nem a adesão nem o voto contrário à greve, marcou prova para os alunos de sua turma. No silêncio da unidade acadêmica esvaziada, os mais assustados compareceram, temendo represálias. O professor não quer correr o risco de ter prejudicada uma viagem internacional programada desde antes da greve.


Burgueses...


PS.: ele não está sozinho...





segunda-feira, 25 de junho de 2012

hibisco (*)







(*) Por um descuido na postagem, esqueci da letra "h" na palavra hibisco. Que me perdoem os que observaram o lapso, finalmente corrigido. Os hibiscos continuam belos... ainda bem. Obrigada, Encantado, pela observação!



sábado, 23 de junho de 2012

Para aprender uma cidade



Para Tereza Caniatti, Luiz Marques de Lima, e minha amada Rutinha, que me apresentou a Brasília, e nela construiu um lar aconchegante, no qual há um cantinho guardado para mim, há mais de três décadas.

Não demora muito e já se terão passado 40 anos da primeira vez que estive em Brasília. Era grande a expectativa para conhecer a capital do país, ainda cheirando a nova, anunciando o futuro, endereço certo dos sonhos de quantos brasileiros... Mas, quando cheguei, custei a ver a cidade: casas e prédios poucos, baixos, dispersos entre árvores do cerrado. Aquilo era a cidade? Tinha até manchas de pasto jaraguá na área central!

Durante quase 30 anos, meu pés encardiram-se naquela terra vermelha, e os olhos se queixaram da baixa umidade do ar, sobretudo entre os meses de agosto e outubro. Da adolescência à vida adulta, a cidade cresceu, a população multiplicou-se, muitos prédios foram construídos, as ruas passaram a ser disputadas por um número cada vez maior de veículos (a bem da verdade, essas foram as feições que se imprimiram a todos os centros urbanos nas últimas décadas). Em seus espaços públicos, aprendi a participar das mobilizações populares, a construir cidadania, a integrar as cenas da arte e da cultura: grandes concertos abertos, grupos de teatro minimalistas, cinema em praça aberta, exposições de gravuras sobre o gramado. Tomando a rodoviária como ponto de partida, transitei pelo país, indo e vindo: áreas indígenas, comunidades diferenciadas, o Brasil de dentro, o Brasil do litoral. Atuando como professora, instalei-me numa de suas cidades satélites mais distantes, e dali, usuária dos ônibus urbanos, cumpria o percurso centro-periferia diariamente. O trânsito era garantia também de renovação, respiração, transformação. Anos mais tarde, voltei a ser moradora do Plano Piloto, mas continuei trabalhando na cidade satélite, invertendo os sentidos e horários de trânsito, nos velhos ônibus urbanos de que continuava sendo usuária. Uma coleção de histórias se acumula em minha memória, relativa a esse período: inusitadas, assustadoras, dolorosas, alegres, engraçadas. Como é a vida, afinal.

Aos poucos, fui aprendendo as demais cidades satélites. A interlocução com as escolas, seus professores e alunos, o encontro com as comunidades e suas produções artístico-culturais me davam a dimensão humana e sensível das gentes e seus viveres. As viagens de ida e de volta, cansativas quase sempre, impunham-me a condição de reflexão, meditação... Como é possível meditar a bordo de ônibus lotados, que vão soluçando pela estrada, de parada em parada? Como é possível meditar, quando se está cansada, com sono, a ponto de, por força das condições, aprender a dormir em pé, mal e mal apoiada na barra de metal por trás do banco mais próximo? Essa é das nossas, sorri meu aluno quando ouve minhas histórias. Morador de periferia, gasta mais de duas horas para chegar à universidade, todos os dias.

Foi assim, que eu aprendi a cidade. Cidades são como poemas, como romances: a gente lê, estranha o jeito da escrita, insiste na leitura, aprende, e constrói afinidades, ou não. As cidades são construídas, quotidianamente, pelas pessoas que nelas vivem. E não é com tijolo e cimento: é com suas próprias vidas pulsantes. Nossos afetos pela cidade nutrem-se dos vínculos que estabelecemos com quem compartilhamos esse viver na cidade.

Quando me mudei para outra cidade, fui estabelecendo os novos vínculos, necessários para que eu me encontrasse nela e com ela. Para aprendê-la, foi necessário decifrar seus fluxos, suas escritas, seus tempos; conhecer suas gentes, seus modos, seus acordes; atentar para as paletas de cores, as pausas, as texturas. Inserir-me nela, a despeito de todo estranhamento inicial que ela tenha provocado às minhas expectativas.

Moro quase no centro, trabalho quase fora da cidade. Os fluxos de trânsitos cada vez mais me parecem insanos (em qual cidade com mais de um milhão de habitantes esses fluxos não são insanos?). Com as chuvas, as ruas transformam-se em corredeiras ameaçadoras. Mas os finais de tarde quase sempre são lenitivos para os dias cansativos. E os falares das gentes embalam os ouvidos, com críticas humoradas, observações curiosas, olhares pausados.

Ao contrário de Brasília e seus traçados quase cartesianos, as escritas desta cidade seguem linhas curvas, em arabescas redes de deslocamentos. Sinto vertigens, por vezes. Aprendo a me perder e me reencontrar. Aprendo a me divertir com isso. Vou plantando vínculos na cidade, de modo que me surpreendo caminhando rapidamente, sem pensar para onde vou, internalizado em meus passos o mapa dos percursos. E reconheço a voz da vendedora antes de avistar-lhe as feições. Pertenço. Assim como pertenço a Brasília, instalada em mim como espaço-tempo, vínculos, escrita, movimento. Porque aprendi.

E estando fora, aprendi o que ainda não tinha aprendido sobre Brasília, enquanto estive dentro: que a ela não são endereçados apenas os sonhos do futuro, da terra prometida, mas dela são cobrados esses sonhos. E como ela é não mais que uma metrópole a mais nos conturbados cenários metropolitanos contemporâneos, a frustração dos sonhos custa-lhe mais cara do que às outras cidades. Sobre ela sobrepesam, de um lado, o desconsolo que resultou da perda, pelo Rio de Janeiro, do status de capital do país, de outro, o desamparo ante a constatação de que Utopia é não-lugar, e seu endereço não está no Planalto Central.

Nos últimos anos tenho intensificado trânsitos: Rio de Janeiro, São Paulo, Vitória, Recife, Campo Grande, Brasília, Goiânia, Belo Horizonte, Salvador, outras cidades de menor porte... Todas com escritas tão peculiares... Cada qual a articular complexos romances jamais escritos, entretecidos nas histórias sem fim de suas gentes, que se encontram e desencontram nos olhares, nos falares, nos cantares, nas salas e alcovas, nas ruas, nas calçadas descontínuas, nos passos apressados, em pausas necessárias, em balcões e vitrines, no curso dos dias, no sol posto, nas sombras das noites e seus mistérios...

Brasília é assim... As cidades são assim... Convites vivos à leitura, e à participação ativa em seus enredos. As cidades são nossos escritos em suas faces, por dentro de suas veias.

Afinidades se constroem, muito mais por escolha que por contingência. O viver nas cidades se aprende, como se aprende a compor poemas, melodias, tatuagens sobre a pele...




terça-feira, 19 de junho de 2012

o Sistema Solar e o átomo…



... não consigo parar de pensar no Sistema Solar como um átomo...
de que molécula de que tecido de que organismo faríamos parte, afinal?