terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Sobre uma advertência, e sobre "imagens extremamente fortes"


A notícia correu as redes sociais. Os detentos de uma penitenciária no Maranhão, durante uma rebelião, decapitaram 3 homens. Em seguida, fazendo uso da câmera de um aparelho celular, gravaram o cenário de horror. O vídeo foi encaminhado pelo Sindicato dos Servidores do Sistema Penitenciário do Estado do Maranhão a um jornal de grande circulação. Não há informações sobre como o vídeo tenha passado das mãos dos presidiários ao Sindicato. Mas é certo que foi feito para ganhar repercussão. Seus autores, mantidos no anonimato, obtiveram sucesso. No entanto, aqui, não disponibilizarei link de acesso ao vídeo, nem divulgarei imagens. Não corroborarei com seu projeto. Apenas esboço pensamentos desordenados, sensações deflagradas pela visão do horror.

Na matéria que li a respeito, antes do link de acesso ao vídeo, havia uma advertência aos incautos, avisando de que as cenas eram extremamente fortes. Mesmo assim, acionei o vídeo. Ele começa com um letreiro, reiterando o aviso sobre a natureza das cenas. As imagens que se seguem são feitas por alguém que empunha uma câmera voltada para o chão. Um homem de bermudas e chinelas. Ele permanece anônimo. Uma voz dá algumas instruções básicas. Lembra que tem que ajeitar o foco. Temo prosseguir. Penso em tudo quanto temos discutido sobre imagens digitais, cultura contemporânea, sociedade do espetáculo. Temo que tudo isso caia no vazio que possa ser provocado pelas imagens a seguir. Mas me mantenho firme, diante do vídeo. Apenas observo a duração, não chega a um minuto. Acho que ainda tenho fígado para esse trago. Sigo. O homem com a câmera na mão, apontando para o chão, também segue. Aparecem seus pés caminhando. Há movimentação em volta, muitas vozes agitadas. Logo entra no enquadramento uma mancha de sangue, e um corpo sem a cabeça. E outros corpos sem cabeça, e cabeças separadas dos corpos. Mãos anônimas ajeitam as cabeças decepadas para que apareçam melhor no vídeo.Troncos perfurados por incontáveis facadas, cobertos de sangue. Fim.

O sentimento provocado pelas imagens ganhou forma física no estômago. Mas não foi náusea, nem dor. Acho mesmo que foi um vazio. Vazio de humanidade. Vazio de sentido. Como se eu tivesse saltado num precipício. Pouco menos de um minuto, e eu sentia no estômago o frio cortante do vácuo capaz de me tragar.

... tem que ajeitar o foco. Ah, o foco!

Na anomia, o homem é o lobo do homem. O frio no estômago não vem dessa constatação. Mas de algumas perguntas e uma suspeita: na sociedade do espetáculo, que sentidos se constroem para a vida em sociedade? Que ética rege tais relações, se é que há alguma? Qual do papel dos dispositivos nesse contexto? Penso nos dispositivos penitenciária, câmera de vídeo e redes sociais. A que processos de subjetivação imagens como essas estão vinculadas? O que me parece mais perverso não é o ato, em si, mas a sua execução premeditada, com vistas ao espetáculo, e a disseminação do horror na forma do vídeo, nas redes sociais. A suspeita: cenas como essa não resultam de anomia, mas de projetos sociais cuidadosamente montados. Suspeito, também, que tudo quanto eu faça, todos os meus discursos e ações, de uma forma ou de outra, mesmo que à revelia da minha vontade ou intenção, acabem por corroborar com esses projetos.

Haveria como eu me negar a isso, do mesmo modo que me nego a disponibilizar, aqui, o link de acesso ao vídeo, mesmo sabendo o quão fácil é, para qualquer um, localizá-lo?

Que monstros nos habitam, cuja existência insistimos em dissimular?




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