Passava do meio dia, quando eu organizei os pacotes de feijão numa sacola, e segui para o Planetário. À uma da tarde, posicionei-me na fila já formada, com cerca de umas 16 pessoas aguardando a bilheteria que abriria às duas horas. O valor de cada ingresso era um quilo de alimento não perecível. Por isso todos portavam sacolas com diversos itens.
Mal tomei lugar, a moça que, com minha chegada, deixou de ser a última, passando a penúltima da fila, foi logo me avisando, em tom advertente, eu tenho uma amiga que ainda vai chegar, e o lugar dela é aqui comigo, estou falando para você não reclamar quando ela chegar! O calor estava abafado. Sua voz com ares de autoridade somou-se ao desconforto do horário e da longa espera que teria de enfrentar. Depois de uma breve pausa, eu pensando como reagir à sua fala, se me calaria ou não, respondi faça como quiser, mas segurar lugar na fila para alguém ainda não chegou é falta de respeito com os que estarão na fila depois de você, no mínimo é falta de civilidade; eu não concordo.
Neste ponto do relato, preciso referir a figura de Etelvina, a outra mulher que me habita. Nessas ocasiões, Etelvina revela-se. Aliás, ela anima-se com entusiasmo em situações como essa. Por isso mesmo, à reação da moça, que se seguiu, iniciou-se um breve bate-boca, do qual Etelvina tomou parte, é claro! A moça foi irônica, dizendo que aquilo estava parecendo fila da Disney, que se eu quisesse que ficasse com o Planetário só para mim, que o Planetário para ela era coisa comum, etc. Acho que Etelvina ofendeu-se, mesmo, foi com a ideia de que ela, nalgum dia, tivesse ido brigar por ingresso para entrar na Disney. E foi por isso que ela decidiu na minha frente, ninguém segura fila para ninguém. Ah, Etelvina! A moça respondeu quer saber? eu vou é passar para trás, assim não tenho que ficar olhando para a sua cara! E passou a ocupar o lugar imediatamente após mim. Ficou olhando o meu perfil, pois eu me recostei na parede, e fiquei ali, brava, observando o tempo passar, e pensando sobre o lugar da fila, sobre essa prática de segurar lugar na fila, que sempre me tira do sério. Ainda não tinha certeza se Etelvina agira de modo adequado. (Sim, eu reconheço que nem sempre Etelvina acerta na mão...)
As duas filhas da moça, que brincavam por perto, vieram perguntar o que tinha acontecido. Ela deu explicações breves, e falou que voltassem a brincar, mas que não sumissem de sua vista. Então ligou para a amiga, para saber onde ela estava. A amiga ainda estava em casa. Ela disse que não se demorasse, ouviu as explicações da outra, e desligou o celular. Logo chegou outra moça, e se posicionou atrás dela. Desta vez, ela mudou a estratégia, e não deu nenhuma informação sobre a chegada de mais alguém com ela. Começou foi a conversar com a pessoa. Entre sorrisos e conversas amenas, ficaram cúmplices na fila. Falaram sobre o Planetário, sobre os filhos, férias... Ah, ela costuma ir à Disney levar as crianças. E odeia passar as férias em Brasília. Então é isso! Comecei a compreender melhor a situação.
Logo correu, na fila, a informação de que o limite de ingressos adquiridos por pessoa era cinco. Ela fez as contas, e concluiu que faltariam dois ingressos para o total entre ela, a amiga, as filhas das duas, e as demais crianças que a amiga estava trazendo. A outra moça sugeriu que ela consultasse, na fila, alguém que não iria adquirir o total de cinco, para completar os que lhe faltavam. Então ela encontrou alguém bem no início da fila que se dispôs a fazer-lhe o favor.
Rapidamente correram, pela fila, várias negociações desse tipo. Num instante, pessoas que estavam mais atrás solicitaram, como a moça fizera, que pessoas mais à frente assegurassem-lhes a complementação da quota de ingressos.
A amiga da moça com quem Etelvina teve o entrevero chegou pouco antes das duas. Já estava tudo resolvido. Posicionou-se à frente de todos, na fila já imensa. Estava tudo bem. As amigas conversaram animadamente sobre trabalho, férias com as crianças, etc. Soube, então, que eram bancárias, e que estavam se organizando para ir a Caldas Novas ainda naquela semana. Caldas Novas não era exatamente como a Disney, mas já dava para aliviar um pouco a tarefa de terem de conviver intensivamente com os filhos durante as férias. Etelvina contorceu-se, resmungando ah, essa classe média!... Eu fiz um sinal para que ela se calasse. Etelvina, por hoje já deu!
Mas Etelvina estava certa, em alguma medida. As duas amigas não estavam sozinhas. Partilhavam de uma mentalidade predominante entre quantas famílias de classe média, muito bem representadas ali na fila, e em outros espaços públicos. Por isso, e não por outra razão, negociavam pequenos privilégios e vantagens supostamente inocentes, como ocorria ali. Enquanto isso, ensinavam aos filhos que não há nada de mal em assegurar tais pequenas vantagens. Que mal há, afinal, em segurar lugar na fila para quem ainda não chegou, mesmo quando em detrimento de quem tenha efetivamente chegado antes?
Pensei nos meus tios, que eu presentearia com os ingressos para uma sessão do Planetário. Já idosos, residentes em lugar distante daqui, provavelmente não tivessem outra oportunidade de conhecer uma projeção desse tipo. Eu estava contente por poder proporcionar-lhes acesso a essa sessão.
Mais que isso, tive fortalecida a convicção de que não há lugar específico para se praticar a ética e a cidadania, à parte de outros lugares onde se possa dispensar tal prática. De nada valem os discursos sobre ética e cidadania, enquanto esses princípios não estejam tão incorporados a todas as práticas sociais, por mínimas que sejam, de tal forma que já sequer precisemos pensar sobre eles, de tal forma que eles orientem todas nossas ações, e apontem a formação das crianças com quem convivemos.
Eu mesma não fui à sessão. Mas minha alegria foi completa quando constatei a alegria dos dois, no retorno para casa, impressionados com o que tinham visto.
Etelvina, valeu!
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