Escrevi um capítulo de livro sobre a escola para a qual ela
devotou sua vida profissional, nos anos 1960. Entreguei-lhe o texto
finalizado. Ela tomou os papéis entre as mãos trêmulas, e me falou que leria,
para depois me dizer o que achou. Fiquei um pouco apreensiva. Depois me
esqueci. Algum tempo depois, ela me ligou. Queria saber quando eu poderia ir
vê-la. Eu andava atrapalhada. Adiei algumas vezes. Mas ela insistia. Até que, no domingo passado, à tarde, fui ao seu encontro.
Sempre me comovo ao vê-la. A mulher altiva que foi cedeu ao
peso dos 90 anos. As pernas dão os passos com muita dificuldade, e a coluna arqueou
para a frente. Os pés muito inchados querem escapar dos poucos calçados que ainda preservam algum conforto. Ela se desloca pela casa lentamente, apoiada num andador. Recusa sistematicamente
ajudas: impõe-se o desafio de fazer tudo sozinha. Ou quase tudo. Não vai ceder
facilmente às limitações.
Quando cheguei, veio me receber com um livro e papéis à
mão. Tinha alguma pressa. Logo sentou-se ao meu lado. Explicou que fizera uma
segunda cópia do texto que eu lhe dera. Entregou-me uma das cópias, limpa, para
eu anotar o que ela me diria. Ficou com a segunda cópia, onde tinha feito apontamentos. Muitos. De relance, olhei as páginas entre suas mãos, cheias de
notas. Estremeci, como uma estudante na expectativa da correção de um trabalho. Teria ela me aprovado, ou não?
Então ela começou a ler cada parágrafo do meu texto de
15 páginas. E, para cada um deles, fez comentários, realçou ideias, corrigiu
outras, corrigiu frases, informações. Antes de passar à frente, sentenciava: “este ficou
bom, pode deixar como está”, ou “aqui você tem que corrigir”, ou “isto não pode
ficar assim”, ou “esta página toda ficou muito boa, era assim mesmo”. Explicou-me,
severa, as diferenças entre a escola nova e o pensamento de Piaget. Eu deveria
estar segura para fazer a distinção, e não deixar dúvidas, por qualquer
ambiguidade conceitual no texto.
Numa fração ínfima de tempo, encontrei-me no começo dos anos
1980, quando ela foi minha professora no curso de graduação, e assumia aquela
mesma postura comigo, nos meus 19 anos. No começo deste encontro, fiquei preocupada: seria possível, ainda, eu modificar todo o texto já encaminhado para a organização do livro? Depois
me acalmei, entendendo que seria necessário, sim, fazer alguns ajustes; mas não precisava mudar
tudo. O principal, ali, não era a correção propriamente do texto, mas o reencontro da estudante com sua professora, num
exercício fecundo e afetivo.
Anotei tudo. Depois ela me entregou também a sua versão do texto impresso, com as
anotações feitas de próprio punho: letra frágil, muito leve, quase ilegível. Ao final, sinalizou sua aprovação, convidando-me para escrever um livro sobre
o centro de ensino que ela tanto amou. Pediu-me para fazer o trabalho, e
prometeu que me ajudaria, informando todos os contatos e documentos de que tinha
notícias. Disse-me, ainda, que ela gostaria de participar em todas as etapas, para ajudá-la a
reativar a memória. Sentia-se muito inativa.
Quando saí dali, levava comigo meu trabalho (não, não era o capítulo de um livro...), corrigido por
minha mestra. Levava também a emoção renascida da estudante que ainda não
completara duas décadas de vida, diante da mestra que já vivera nove décadas.
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