quarta-feira, 27 de abril de 2016

Uma educadora e sua educanda



Escrevi um capítulo de livro sobre a escola para a qual ela devotou sua vida profissional, nos anos 1960. Entreguei-lhe o texto finalizado. Ela tomou os papéis entre as mãos trêmulas, e me falou que leria, para depois me dizer o que achou. Fiquei um pouco apreensiva. Depois me esqueci. Algum tempo depois, ela me ligou. Queria saber quando eu poderia ir vê-la. Eu andava atrapalhada. Adiei algumas vezes. Mas ela insistia. Até que, no domingo passado, à tarde, fui ao seu encontro.

Sempre me comovo ao vê-la. A mulher altiva que foi cedeu ao peso dos 90 anos. As pernas dão os passos com muita dificuldade, e a coluna arqueou para a frente. Os pés muito inchados querem escapar dos poucos calçados que ainda preservam algum conforto. Ela se desloca pela casa lentamente, apoiada num andador. Recusa sistematicamente ajudas: impõe-se o desafio de fazer tudo sozinha. Ou quase tudo. Não vai ceder facilmente às limitações.

Quando cheguei, veio me receber com um livro e papéis à mão. Tinha alguma pressa. Logo sentou-se ao meu lado. Explicou que fizera uma segunda cópia do texto que eu lhe dera. Entregou-me uma das cópias, limpa, para eu anotar o que ela me diria. Ficou com a segunda cópia, onde tinha feito apontamentos. Muitos. De relance, olhei as páginas entre suas mãos, cheias de notas. Estremeci, como uma estudante na expectativa da correção de um trabalho. Teria ela me aprovado, ou não?

Então ela começou a ler cada parágrafo do meu texto de 15 páginas. E, para cada um deles, fez comentários, realçou ideias, corrigiu outras, corrigiu frases, informações. Antes de passar à frente, sentenciava: “este ficou bom, pode deixar como está”, ou “aqui você tem que corrigir”, ou “isto não pode ficar assim”, ou “esta página toda ficou muito boa, era assim mesmo”. Explicou-me, severa, as diferenças entre a escola nova e o pensamento de Piaget. Eu deveria estar segura para fazer a distinção, e não deixar dúvidas, por qualquer ambiguidade conceitual no texto.

Numa fração ínfima de tempo, encontrei-me no começo dos anos 1980, quando ela foi minha professora no curso de graduação, e assumia aquela mesma postura comigo, nos meus 19 anos. No começo deste encontro, fiquei preocupada: seria possível, ainda, eu modificar todo o texto já encaminhado para a organização do livro? Depois me acalmei, entendendo que seria necessário, sim, fazer alguns ajustes; mas não precisava mudar tudo. O principal, ali, não era a correção propriamente do texto, mas o reencontro da estudante com sua professora, num exercício fecundo e afetivo. 

Anotei tudo. Depois ela me entregou também a sua versão do texto impresso, com as anotações feitas de próprio punho: letra frágil, muito leve, quase ilegível. Ao final, sinalizou sua aprovação, convidando-me para escrever um livro sobre o centro de ensino que ela tanto amou. Pediu-me para fazer o trabalho, e prometeu que me ajudaria, informando todos os contatos e documentos de que tinha notícias. Disse-me, ainda, que ela gostaria de participar em todas as etapas, para ajudá-la a reativar a memória. Sentia-se muito inativa.

Quando saí dali, levava comigo meu trabalho (não, não era o capítulo de um livro...), corrigido por minha mestra. Levava também a emoção renascida da estudante que ainda não completara duas décadas de vida, diante da mestra que já vivera nove décadas.







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