segunda-feira, 18 de abril de 2016

Um espetáculo sombrio


Domingo, 17 de março de 2016, não será esquecido. Não por mim.

Nesse dia, a espetacularização foi a grande estratégia de dominação e desestabilização da instituição do Estado. Funcionou. A programação televisiva do domingo à tarde trocou as tolices dos quadros de entretenimento pela funesta ópera encenada pelo parlamento, endereçada às famílias brasileiras, instaladas em seus lares. Teria trocado, mesmo, ou a ópera seria resultado da pedagogia infalível dos incontáveis domingos e seus quadros de entretenimento?

A sessão dominical extraordinária não deixou dúvidas: previa a população brasileira à frente dos aparelhos televisivos, acompanhando voto a voto, a performance dos deputados eleitos pelo voto popular. Estes, por sua vez, ensaiaram scripts cuidadosamente montados, nos quais evocavam, em sua maioria, membros da própria família, a figura de Deus, sua comunidade, a cidade, o país, a humanidade. Buscavam estabelecer empatia com as famílias que acompanhavam a ópera, numa rasa percepção sincrética da comoção que atravessava a atmosfera. Outros foram mais atrevidos, evocando, inclusive, os protagonistas mais perversos da ditadura militar. (Resistirei bravamente à tentação de fazer referência aos crimes cometidos ao uso da língua mãe...)

Talvez essa tenha sido a única oportunidade propiciada pelo Congresso Nacional de ver a sua face à luz, inteira. Apenas duas ausências. Estas não fizeram falta, sem repercussões significativas para as feições macabras, sombrias do parlamento.

Não faltou quem, generosa e esperançosamente, bradasse que o Congresso não representa a população brasileira. Em termos estatísticos, de fato, as proporções são díspares: a representação de mulheres, negros, índios, jovens, entre outros segmentos, é mínima, quando não inexistente. Enquanto que a representação de homens, brancos, empresários é majoritária.

No entanto, essa representação majoritária corresponde ao pensamento predominante entre os eleitores (incluídos aí todos os segmentos não representados no parlamento...). Para construir alguma interpretação possível, recorro à segunda das sete leis herméticas, a Lei da Correspondência: "Aquilo que está em cima é como aquilo que está embaixo." Hermes Trismegisto tinha em mente as relações entre o macrocosmo e o microcosmo, ao formular essa lei. Entendo que ela possa ajudar a compreender as relações nas várias instâncias, incluindo as das relações sociais e políticas, traduzidas, em cascata, desde as instituições macro e os grandes coletivos, aos grupos mais singulares representados pelos núcleos familiares, por exemplo. Se assim, é possível pensar que, sim, o parlamento que ontem mostrou sua face mais assustadora corresponde, em alguma medida, à face invisível da população que o elegeu.

Há questões que não se podem deixar de consider nessa correspondência. Dos mais de quinhentos deputados que compõem a Câmara, são raros os que não estão respondendo a processos na justiça, em diferentes instâncias, pelos mais variados tipos de crime (talvez essa também seja uma categoria a ser agregada às outras majoritárias: homens, brancos, empresários, respondendo a processos na justiça...). Desse mesmo corpo parlamentar, apenas pouco mais de 30 foram eleitos pelos chamados votos próprios. Ou seja, foram eleitos por votos nominalmente endereçados a eles. Os demais foram arrastados pelos votos proporcionais em suas coligações. Assim, muitos candidatos eleitos obtiveram menos votos que outros muito mais votados, mas vinculados a coligações que não conseguiram alcançar a chamada média proporcional. Essa regra gera distorções, sim.

Mas não quero me iludir, justificando a face feia do congresso a partir dessa regra, e isentando a população de ter eleito candidatos tão afeitos à corrupção e ao cinismo. Os parlamentares eleitos pelo voto próprio não têm perfil muito distinto dos demais. Esses, que funcionam como puxadores dos outros eleitos pela proporcionalidade, estabelecem, com aqueles, relações de afinidade. Tiririca é um exemplo inequívoco. Ao fim e ao cabo, montam um mosaico mais ou menos coeso e coerente de uma cena da qual eu não gostaria de tomar parte, como cidadã e eleitora que sou.

Cidadã. Mulher. Eleitora. Fracassada. O sentimento de fracasso de que sou tomada se refere ao papel social por mim assumido, como educadora. Empurra-me a indagar sobre os caminhos que tenho escolhido, fundados em propostas que defendem o esclarecimento, o exercício da autocrítica, a pergunta, a ética da alteridade, a disposição ao diálogo... Em que medida eu de fato tenho contribuído na formação cidadã nessa direção? Contra que forças esse projeto deve empreender seus embates? O que eu tenho deixado de ver, e por isso tenho falido nesse propósito? (Eu, e os quantos que, como eu, defendam esses mesmos princípios...)

O espetáculo de ontem, promovido pelo Congresso Nacional, cumpriu também uma função pedagógica de grande impacto. O monstro mostrou sua face, eu a vi. Ela me causou horror e náusea. Eu aprendi. Não a esquecerei.





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