Domingo, 17 de março de 2016, não será esquecido. Não por
mim.
Nesse dia, a espetacularização foi a grande estratégia de
dominação e desestabilização da instituição do Estado. Funcionou. A programação
televisiva do domingo à tarde trocou as tolices dos quadros de entretenimento
pela funesta ópera encenada pelo parlamento, endereçada às famílias brasileiras, instaladas em seus lares. Teria trocado, mesmo, ou a ópera
seria resultado da pedagogia infalível dos incontáveis domingos e seus quadros de
entretenimento?
A sessão dominical extraordinária não deixou dúvidas: previa a população brasileira à
frente dos aparelhos televisivos, acompanhando voto a voto, a performance dos
deputados eleitos pelo voto popular. Estes, por sua vez, ensaiaram scripts cuidadosamente
montados, nos quais evocavam, em sua maioria, membros da própria família, a
figura de Deus, sua comunidade, a cidade, o país, a humanidade. Buscavam
estabelecer empatia com as famílias que acompanhavam a ópera, numa rasa
percepção sincrética da comoção que atravessava a atmosfera. Outros foram mais atrevidos, evocando, inclusive, os protagonistas mais perversos da ditadura militar. (Resistirei bravamente à tentação de fazer referência aos crimes cometidos ao uso da língua mãe...)
Talvez essa tenha sido a única oportunidade propiciada pelo
Congresso Nacional de ver a sua face à luz, inteira. Apenas duas ausências. Estas
não fizeram falta, sem repercussões significativas para as feições macabras, sombrias do parlamento.
Não faltou quem, generosa e esperançosamente, bradasse que o Congresso não representa a
população brasileira. Em termos estatísticos, de fato, as proporções são díspares:
a representação de mulheres, negros, índios, jovens, entre outros segmentos, é
mínima, quando não inexistente. Enquanto que a representação de homens,
brancos, empresários é majoritária.
No entanto, essa representação majoritária corresponde ao
pensamento predominante entre os eleitores (incluídos aí todos os segmentos não representados no parlamento...). Para construir alguma interpretação possível, recorro à segunda das sete leis
herméticas, a Lei da Correspondência: "Aquilo que está em cima é como
aquilo que está embaixo." Hermes Trismegisto tinha em mente as relações
entre o macrocosmo e o microcosmo, ao formular essa lei. Entendo que ela possa
ajudar a compreender as relações nas várias instâncias, incluindo as das
relações sociais e políticas, traduzidas, em cascata, desde as instituições macro e os grandes coletivos, aos grupos mais singulares representados pelos núcleos familiares, por exemplo. Se assim, é possível pensar que, sim, o
parlamento que ontem mostrou sua face mais assustadora corresponde, em alguma
medida, à face invisível da população que o elegeu.
Há questões que não se podem deixar de consider nessa correspondência. Dos mais
de quinhentos deputados que compõem a Câmara, são raros os que não estão respondendo a processos na justiça, em diferentes instâncias, pelos mais variados tipos
de crime (talvez essa também seja uma categoria a ser agregada às outras majoritárias: homens, brancos, empresários, respondendo a processos na justiça...). Desse mesmo corpo parlamentar, apenas pouco mais de 30 foram eleitos pelos
chamados votos próprios. Ou seja, foram eleitos por votos nominalmente endereçados
a eles. Os demais foram arrastados pelos votos proporcionais em suas
coligações. Assim, muitos candidatos eleitos obtiveram menos votos que outros
muito mais votados, mas vinculados a coligações que não conseguiram alcançar a
chamada média proporcional. Essa regra gera distorções, sim.
Mas não quero me iludir, justificando a face feia do
congresso a partir dessa regra, e isentando a população de ter eleito
candidatos tão afeitos à corrupção e ao cinismo. Os parlamentares eleitos pelo
voto próprio não têm perfil muito distinto dos demais. Esses, que funcionam
como puxadores dos outros eleitos pela proporcionalidade, estabelecem, com
aqueles, relações de afinidade. Tiririca é um exemplo inequívoco. Ao fim e ao cabo, montam um mosaico mais ou menos
coeso e coerente de uma cena da qual eu não gostaria de tomar parte, como
cidadã e eleitora que sou.
Cidadã. Mulher. Eleitora. Fracassada. O sentimento de fracasso de
que sou tomada se refere ao papel social por mim assumido, como educadora. Empurra-me
a indagar sobre os caminhos que tenho escolhido, fundados em propostas que defendem
o esclarecimento, o exercício da autocrítica, a pergunta, a ética da alteridade,
a disposição ao diálogo... Em que medida eu de fato tenho contribuído na
formação cidadã nessa direção? Contra que forças esse projeto deve empreender
seus embates? O que eu tenho deixado de ver, e por isso tenho falido nesse
propósito? (Eu, e os quantos que, como eu, defendam esses mesmos princípios...)
O espetáculo de ontem, promovido pelo Congresso Nacional, cumpriu
também uma função pedagógica de grande impacto. O monstro mostrou sua face, eu a vi. Ela me causou
horror e náusea. Eu aprendi. Não a esquecerei.
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