sábado, 17 de maio de 2014

O médico e o físico amantes do cinema, e a antiga sala da Cultura Inglesa, em Brasília


A pequena sala da Cultura Inglesa, em Brasília, foi palco de memoráveis momentos do cinema na capital federal. Fui frequentadora assídua, nos anos 80, de toda sua programação. Hoje dou-me conta de que encontrei, ali, a primeira grande escola de cinema, aberta às diferenças, às divergências, à diversidade mais radical. A programação era assinada pelo Da Mata, e o Zé ficava à porta, recolhendo os ingressos. Todos brincavam dizendo que ele tinha bebido tanto, que já alcançara um estado alcoolizado permanente. Por isso mesmo alguns o chamavam de Zé do Brejo. O fato é que ele conhecia toda a programação, e o público que frequentava a sala. Tinha assunto para conversar com todos, e dava conta da vida de cada um.

Acho que foi em 1983, houve um festival com filmes de curta metragem, experimentais. O público votaria suas preferências. Assisti a todos. Foi quando pudemos acompanhar o impagável filme Cruviana, do físico amante do cinema, José Acioli. Inesquecível, lamento que não tenha sido digitalizado, para ser degustado pelas novas gerações imersas nas imagens digitais.

Meio dissimulado dentre os demais, havia um filme a cujo título não cheguei a dar muita atenção. Era um nome científico, da área médica. Cheguei a imaginar que tivesse sido apropriado, para dar nome a alguma história psicodélica. Sabe-se lá o que se passa na cabeça de cineastas experimentais, não é? 

Mas todos foram surpreendidos ao constatar que se tratava de um filme que correspondia ao título ao pé da letra: Mastectomia subcutânea, de Jorge Martins, era o registro, sem cortes, de uma cirurgia de retirada de mama, em cru, ali, à vista de artistas, intelectuais, gentes mais ligadas às metáforas da vida. Uma parte da platéia se retirou, durante a projeção. Uns, por acharem um acinte à arte do cinema incluir no festival uma coisa daquelas. Outros por não resistirem a visão do corpo cortado, da mama dilacerada, da pele solta e a mão do cirurgião enfiando-se entre a carne morna e cheia de sangue. 

Três décadas depois desse episódio, no grupo de que faço parte, com pessoas dispostas a aprender a operar com as ferramentas para edição de vídeo digital, há um médico cirurgião. Ele se queixa, relatando que não encontrara ninguém da área que acolhesse a ideia de editar seus vídeos de cirurgias, para que ele possa usar nas aulas. Por essa razão, decidiu-se a ganhar autonomia, e fazer ele mesmo. Foi inevitável, lembrei-me imediatamente do filme Mastectomia subcutânea.

Fazendo uma rápida incursão na internet, buscando informações a respeito, localizei uma dissertação que trata de filmes realizados em Brasília, desde os anos 1960, até o início dos anos 2000. A ênfase do estudo está na necessidade de se organizar uma cinemateca da cidade, para preservar essa produção - pauta essa que, de urgente, já se encontra em atraso injustificável. Entre os filmes listados, está o delicioso Cruviana, bem como Mastectomia subcutânea. Trata-se da dissertação intitulada Preservação de Acervos Fílmicos no Distrito Federal, defendida por Angélica Gasparotto de Oliveira, no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, em 2013, com a orientação da Profª Drª Miriam Paula Manini.

Fiquei muito contente ao encontrar esse material. Tomara que ele seja, de fato, um contributo para o estabelecimento de políticas públicas que visem à preservação da filmografia de Brasília. Contei a história ao meu colega médico, que anda muito entusiasmado com a nova função de edição de vídeos. 

Mas eu gostaria, mesmo, era de rever o curta metragem Cruviana...

A propósito, aos que andam, por aí, viajando de noite, tenham muito cuidado, para não encontrar a cruviana, estando desprevenidos!




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