sábado, 1 de fevereiro de 2014

Saudades e ETs: uma história típica de Brasília


Para minha pesquisa de doutorado, eu andava às voltas com a etimologia da palavra saudade. Encontrava as referências corriqueiras, disponíveis em quaisquer dicionários, que dão conta da origem latina da palavra:  solitas, solitatis, que significam, originalmente, solidão. Na língua portuguesa, a palavra ganhou as formas arcaicas soedade, soidade e suidade. Recorrentemente é apontada, também, alguma relação com as palavras saúde e saudar

Mas o Prof. J.B. insistia que eu deveria buscar a influência árabe na formação da palavra. Contudo, eu não conseguia nenhuma referência bibliográfica, tampouco pesquisa publicada, que tratasse do assunto. Até que encontrei, num dicionário pequeno, quase artesanal, perdido entre as estantes da biblioteca, um estudo extenso para o verbete. Ali, encontrei citado um autor que defendia essa influência. Reportei a ele a novidade, contente também por saber que o autor do dicionário era um professor aposentado pela universidade onde eu estudava. De pronto, o Prof. J.B. resolveu empreender esforços para encontrá-lo. Afinal, tratava-se de alguém que admitia um tempero árabe para essa palavra tão cara a nós, falantes da língua portuguesa!

Numa livraria bem conhecida, ele encontrou não só notícias sobre o autor do dicionário, bem como o próprio autor, e a informação de que estava sendo feita uma segunda edição da obra. Como providência inevitável, assegurou a aquisição de um exemplar. Ante o entusiasmo tanto meu quanto do Prof. J.B. com o assunto, o autor e a dona da livraria nos convidaram para tomar parte de um grupo devotado ao estudo de filosofia. As reuniões eram numa chácara, aos domingos. Ante uma provocação de tal natureza (quem, afinal, recusa um convite para estudar filosofia, aos domingos, numa chácara nas cercanias da cidade?), acolhemos a proposta, e providenciamos nossa participação já para o fim de semana seguinte.

A chácara ficava na estrada que liga Brasília a Goiânia, um pouco antes de Alexânia. Logo depois das sete curvas, havia uma estradinha de terra, à esquerda. Seguimos, observando os pontos de referência. Chegamos a uma casa com planta arredondada. Os muitos carros estacionados indicavam que as atividades já tinham sido iniciadas, contando com um número razoável de pessoas. No salão, várias mesas ocupadas por pessoas de faixas etárias diversas. Acomodamo-nos, por indicação da dona da livraria, numa mesa um pouco mais distante, e tentamos nos inteirar sobre os trabalhos em curso.

Uma senhora, a dona da chácara, fazia uma palestra, acompanhada com atenção pelo público numeroso. Ela relatava sua experiência com extraterrestres, ocorrida no final dos anos 1980, quando teria sido abduzida. Observando melhor, lembrei-me de ter visto seu rosto estampado num livro assinado por ela, cujo exemplar tinha estado, à época, em minhas mãos. Nele, ela fazia o relato do evento que, quase duas décadas depois, ocupava sua palestra. Trocamos breves olhares, eu e o professor, compartilhando suspeitas sobre qual o tipo de discussão que aconteceria ali. A senhora exaltava a sabedoria de seus amigos interplanetários, com quem mantinha contato continuado. A propósito, ela destacava a presença dos extraterrestres entre nós, mesmo que não os percebêssemos, e anunciava sua capacidade de cura para os nossos males.

Já ao meio dia, ela explicou que seria servido o almoço, para que, no período da tarde, pudessem retomar as atividades. O menu era próprio para a ocasião, incluindo em seu preparo elementos especiais que não só serviam para limpar o organismo como também deixavam as pessoas mais aptas e sensíveis para o contato extraterrestre. A essas alturas, o Prof. J.B. inquietou-se na cadeira e, mesmo sem me consultar previamente sobre se eu queria ou não experimentar tais iguarias, foi logo se lamentando pelo fato de termos um compromisso em Anápolis e outro em Goiânia, tudo no mesmo domingo, o que nos impediria de partilhar a refeição com o grupo, e acrescentou mais alguns argumentos, antes que nos despedíssemos, com abraços fraternos e votos de muitas coisas boas, e agradecimentos pelo convite e pela acolhida, e coisa e tal. E já seguíamos pela estrada, de volta, com uma fome danada, pensando em filosofia, ETs e, quem sabe, um rodízio de churrascaria...

Ainda hoje, quando passamos por aquela altura da estrada, lembramos do episódio que ficou, em minha memória, ligado a um sentido fundo da palavra saudade, esse sentimento que lembra o sangue pisado e preto dentro do coração, como parecem sugerir as expressões árabes, suad, saudá e suaidá...




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