quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Pelo direito de ir e vir, de ser e conviver na diversidade



Estive em Cuba na segunda metade dos anos 90, no século passado. Fui participar de um congresso em Educação, dentro da política de turismo acadêmico que anima uma boa fatia das atividades econômicas da Ilha, na captação de dólares estrangeiros e no fortalecimento das discussões acadêmicas do país.

Chegamos a Havana quase meia noite. No hotel, cujas diárias foram pagas com antecedência, deparamo-nos com o primeiro problema: a prática de over booking nos deixara sem hospedagem. Sentados nos sofás dispostos no grande hall do hotel, aguardávamos por alguma solução, enquanto observávamos o ambiente. Mulheres exuberantes, calçando sapatos de plataformas muito altas e vestindo roupas douradas e prateadas circulavam por ali, acompanhadas de cavalheiros elegantes. Logo compreendi que os cassinos que dominavam o país na era do ditador Fulgêncio Batista haviam permanecido, de modo dissimulado, animando a economia cubana por frestas que interessam ao regime ali instalado. Compreendi, também, que as moças exuberantes, prostitutas de luxo, disponibilizavam seus préstimos a empresários estrangeiros dispostos a buscar diversão ali, na Ilha de Fidel. As prostitutas, por serem remuneradas em dólar norte-americano, podiam comprar artigos caros, não disponibilizados às demais mulheres da Ilha, nas parcas prateleiras de mercados onde circulavam/circulam dólares cubanos.

A professorinha de Educação Infantil, residente na província Ciego de Ávila, via em mim alguma possibilidade de contato e extensão fora da Ilha. Ela usava uma sapatilha sem salto – o único par de que dispunha – e um vestido com saia godê. Parecia um uniforme, usado pela maior parte das mulheres, obrigadas a comprar os poucos itens disponíveis nas lojas existentes - sem pluralidade de escolhas. Não posso me esquecer de seu olhar, mirando meu rosto. Seus olhos tentavam imaginar, sonhadores, tudo quanto os meus olhos já teriam testemunhado fora dali: paisagens, pessoas, coisas, eventos a que ela jamais teria acesso... Éramos professoras, as duas. Eu reunira economias durante muito tempo para financiar a viagem, em prestações distribuídas por longos meses. Apesar de tudo, esse fora um projeto viável para mim. No entanto, quando ela me perguntou quanto tudo teria custado, assustou-se: em toda a minha vida, não ganharei sequer uma parte desse valor!

Os funcionários do hotel, por terem contato direto com os hóspedes estrangeiros, tinham algumas regalias. Além disso, rapazes bem apessoados disponibilizavam-se para servir as mulheres hospedadas. Tinham em vista, quem sabe, conseguir emplacar alguma negociação, por exemplo, que resultasse em contrato de casamento. Assim, poderiam sair do país sob o amparo da lei. Havia, também, taxistas credenciados para atender turistas. Alguns deles com níveis muito altos de escolarização, embora vivessem com muitas dificuldades e restrições. Um deles não hesitou em oferecer-me alguns livros de seu acervo pessoal, como uma oportunidade de conseguir algum dinheiro extra.

Num desses dias, uma jovem estudante de medicina levou-me para almoçar em sua casa. Esse gesto gentil, afetuoso, implicou numa despesa extra muito grande em relação ao seu orçamento familiar: a compra de batatas extras, e um pouco mais de carne moída, representou um esforço inimaginável para nós, brasileiros! Na volta para o hotel, deparei-me com uma fila enorme numa praça. Eram candidatos a tomar a cota de sorvete à qual tinham direito, em regime de racionamento...

Algumas imagens não se apagaram da minha memória. Casas suntuosas em Habana nueva, e residências apertadas, populares, da Habana vieja. Carros velhos, reciclados, caminhões velhos adaptados para conduzir passageiros. E os discursos intermináveis de Fidel. Eu mesma assisti a um que durou cerca de 2 horas. Lá, contaram-me que, tendo em conta a paixão dos cubanos pelas novelas brasileiras, uma estratégia adotada pelo governo era programar a transmissão de seus pronunciamentos antes do horário da novela. Assim, os discursos tinham audiência garantida.

O povo cubano não é o seu governo, qualquer que seja ou tenha sido. Não basta assegurar alimento a todos – ainda que pouco. Altos níveis de escolarização sem liberdade de ir e vir perdem seu valor intrínseco. Restrições severas em condições de desigualdade na mesma sociedade revelam distorções e descaminhos que não correspondem a discursos de justiça social e garantia de direitos.

Qualquer governo totalitário é indesejável, seja à direita, ou à esquerda, tampouco no centrão. O convívio na diversidade é o pressuposto da democracia. Em nome desse direito inalienável, retomo aqui os três princípios da ética da solidariedade, também chamada de ética da tolerância, apresentados por Edgar Morin:

1.  O primeiro é buscado em Voltaire: “suas ideias me são odiosas, mas morrerei pelo direito que você tem de exprimi-las”;

2.  O segundo é buscado na instituição democrática: “O problema difícil que se coloca é que se tem de suportar algumas minorias que querem destruir a democracia”.

3.  O terceiro é buscado em Pascal e Niels Bohr: “o contrário da verdade não é um erro, mas uma verdade contrária”, e “o contrário de uma verdade profunda não é um erro, mas outra verdade profunda”.

A propósito, bem-vinda, bienvenida, Yoani Sánchez, mulher, blogueira, mãe de família, cidadã cubana! Sua presença nos faz ver feições nossas que, em outras condições, permaneceriam nas sombras, quem sabe por quanto tempo adiadas... De algumas dessas feições, tenho profunda vergonha: também como mulher, blogueira, educadora, cidadã brasileira, defensora do Estado democrático, do direito à alteridade. 

Yoani Sánchez nos dá várias lições: sua atuação como blogueira abre portas de diálogo, na diversidade, a despeito da conexão à internet de baixíssima velocidade à qual tem acesso, se considerarmos o que prevalece na maior parte do planeta globalizado. Ante as manifestações contrárias à sua presença no Brasil, ela se pronuncia argumentando pelo direito de se manifestar assegurado a todos. E acena pelo dia quando também possa testemunhar e participar desse tipo de manifestação em seu país.

Às vésperas do 8 de março, dia destinado a saudar os direitos das mulheres, cabe perguntar: que papel cumpre essa mulher no cenário internacional contemporâneo? De que lugar levantam-se os manifestantes, contrários e a favor dela?



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