Às Madame Mims que ainda resistem, por aí,
preservando suas singularidades.
Já faz muito tempo, chegou-me às mãos uma história em
quadrinhos que me instigou a pensar muitas coisas sobre a cultura urbana, a
sociedade do espetáculo, a lógica do mercado. Já não sei onde foi parar a revistinha,
também não saberia ser fiel à história original. Por isso a reinvento, realçando
certas cores e urdindo traços que me ajudem a aproximá-la mais das minhas
questões e perguntas. Que se me permitam tais liberdades. A história trata de
um conjunto de eventos desencadeados a partir do encontro entre duas
personagens cujos mundos são muito distintos: a Bruxa e a Jornalista.
A Bruxa era uma velhota que vivia quase
isolada numa floresta, ocupada com suas plantas, seus animais e as fórmulas
secretas de suas bruxarias. A vida era boa e seguia sem maiores sustos - além
daqueles resultantes de alguma poção com efeito indesejado. Até o dia em que a
Jornalista, integrando um tour de
ecoturismo, perdeu-se do seu grupo e dos guias, embrenhando-se na mata. Depois
de muito tempo tentando encontrar o caminho de volta, saiu no quintal da Bruxa.
Como primeira reação, a Jornalista animou-se por ter
encontrado alguém em meio à selva. Sentiu-se a salvo. Em seguida, foi tomada por
um certo déjà vu, talvez sentindo-se
a própria Maria, desta vez desacompanhada do parceiro João, chegando a uma
estranha casinha (embora não fosse feita de doces...) habitada por uma ainda
mais estranha criatura. Quase sentiu medo. Afinal, ali, sem maiores contatos
sociais, a Bruxa não se preocupava muito com a aparência: os cabelos quase
grisalhos despenteados, a blusa muito solta por fora da saia, a saia muito
larga de tecido escuro surrado pendia até o chão, e as chinelas batendo-se
contra o piso iam conversando uma com a outra pec-pepec-pec-pepec-pec-pepec às passadas irregulares dos pés que
as calçavam. Um gato, uma coruja, um sapo, e outros animais pouco habituais
para os habitantes da cidade compartilhavam o espaço com ela.
A Bruxa também não gostou nada da novidade, tão logo descobriu
a visitante nas redondezas. Não deixou dúvidas quanto ao desagrado: declarou que
se fosse dali! Mas a moça não podia, pois não sabia como ir embora. Pediu para
ficar só um pouquinho, enquanto retomasse o fôlego, bebesse um gole de água.
Pediu, também, que ensinasse a saída daquele labirinto verde que lhe afigurava a
floresta.
Fazer o que? A moça ficou, um pouco. E demorou-se pouco
mais, e foi delongando a estadia, só mais um pouquinho, à medida em que ia
descobrindo, com fascinação, o quão interessante era a Bruxa, e o quanto esse
achado poderia lhe render bons frutos.
Aqui vale uma pausa para algumas observações. Chama-me a
atenção a sofreguidão com que buscamos a novidade, o singular, o desconhecido,
tomando tais referências como a saída para a mesmice, o rotineiro. Novidade
como remédio para a rotina: a primeira, mercadoria buscada por consumidores em
vias de se entediar a cada instante; a segunda, a ameaça que ronda os dias, temida
por consumidores aflitos, pressionados a mostrar imagens novas, a relatar a
última sensação impressionante, ou registrar a mais recente constatação
transformadora de seu modo de ser e estar no mundo... Mas a corrida em busca da
novidade, do diferente, está também entre os produtores culturais, entre
aqueles que assumem os papéis de cientistas e intelectuais, capazes de produzir
interpretações sofisticadas sobre sua realidade... Como se já tivéssemos
compreendido o bastante o que nos cerca, como se já nos conhecêssemos o
suficiente, e às paisagens familiares aos nossos quotidianos... Puis...
A Jornalista entendeu estar diante de uma pessoa cujo
estilo, cujos afazeres, cujo modo de vida eram desconhecidos das gentes da
cidade. Anunciá-la no contexto urbano poderia lhe render boas matérias. A mais,
ela faria a gentileza de dar visibilidade à Bruxa, trazendo-a ao contato com
milhares de pessoas, que poderiam conhecê-la, aprender com ela. O desconforto
inicial sentido pela velha senhora foi dando lugar à curiosidade sobre como
seria a cidade, como seriam seus habitantes. E também à vaidade por ter seu
mundo reconhecido por alguém que vinha de longe, que conhecia outros lugares, e
tinha parâmetros para separar as coisas relevantes das coisas não relevantes.
Baixou a guarda. Mostrou algumas poções. Explicou as funções de algumas
plantas, os movimentos das estações, as relações com os animais. A jornalista
anotou tudo, sem perder qualquer detalhe. Embora não se arvorasse a produzir
relatórios científicos, mas textos jornalísticos, realizou o que muitos
pesquisadores chamariam de etnografia
intensiva.
Ao final de alguns dias, seguiu de volta para a cidade, portando
dados aos quais ninguém antes dela tivera acesso. Escreveu matérias, explicou o
que vira, despertou a curiosidade dos leitores que desejaram conhecer a Bruxa
pessoalmente. Então ela retornou à floresta, aprendido já o caminho, e convidou
a estranha senhora a participar de programas de entrevista, a serem veiculados
em canais abertos e fechados de televisão, circuitos de internet, além das
matérias a serem veiculadas em jornais e revistas. Curiosa com o que se
descortinava à sua frente, a Bruxa cuidou das plantas, apagou o fogo, fechou o
bocal do poço, cerrou janelas e portas de sua pequena casa, e afastou-se dali -
coisa que nunca fizera antes - levada pela Jornalista.
Tudo aconteceu muito rapidamente: a Bruxa tornou-se o
assunto principal entre as pessoas, teve seu rosto estampado na capa de
revistas, programas discutiam suas receitas no uso de plantas, estilistas
produziram coleções inspiradas em seu desapego ao fútil. Ela passou a ser
chamada a falar em programas ao vivo, em redes de televisão, tratando de questões
sobre o amor, relacionamentos, saúde, autoajuda, nova era, meio ambiente,
autossustentabilidade, comportamento, consumidores compulsivos... É claro que
ela nunca tinha muito tempo para falar, logo era interrompida pelos
apresentadores, que passavam a palavra para o auditório mais animado, ou algum
repórter de plantão que tivesse uma informação de última hora para acrescentar
à discussão.
A Bruxa era conhecida nas ruas. Alegrava-se
cumprimentando os passantes, que se dirigiam a ela como velhos amigos, parentela
extraviada, quem sabe? Como ela não tivera, antes, a oportunidade de conhecer
aquelas gentes tão acolhedoras? Quanto tempo perdido!
Mas houve quem não tivesse gostado daquela história toda:
a diretoria da Associação Internacional das Bruxas, que acionou a Comissão de
Ética e convocou a Bruxa a uma reunião de caráter extraordinário. Ela então voltou
à floresta, para se explicar sobre as aventuras dos últimos tempos. No entanto,
as explicações dadas não foram suficientes para entusiasmar, muito menos para
convencer a congregação sobre sua conduta, pois aqueles segredos jamais
poderiam ter sido trazidos a público. Apesar de alguns cuidados tomados por
ela na seleção dos itens divulgados - apenas receitas ingênuas e de
pouca expressão na cultura bruxesca - a sentença foi unânime: suspensa, durante
um ano, de suas atividades, ficou proibida de fabricar qualquer poção, fazer
qualquer feitiço, rogar qualquer praga, usar qualquer ferramenta de mágica,
usar qualquer vegetal ou animal com poderes especiais. Ao final do período
estipulado, deveria se apresentar, novamente, à Comissão de Ética, para ser
reconduzida às suas funções.
No fundo, no fundo, a Bruxa não ficou chateada. Ela
pensou que poderia viver muito bem, durante esse ano, entre as pessoas que a
admiravam, queriam saber sua opinião, e imitavam sua forma de se vestir, falar,
explicar o mundo. Ao final do castigo, retomaria sua vidinha na floresta, com
seus animais, plantas e poções. Sem reclamar, acatou a sentença, e voltou para
a cidade, ansiosa por reencontrar seus fãs.
Chegando, começou a cumprimentar os passantes, que a
olharam de modo estranho, sem corresponder ao seu entusiasmo. Então ela notou
que já ninguém usava roupas parecidas com as dela. O que ocorrera durante os
dias em que estivera fora? Na banca, outros rostos estavam estampados nas capas
das revistas e nos jornais. Sem compreender, perguntou ao jornaleiro porque
parecia que todos se haviam esquecido dela. Ouviu a confirmação: não parecia,
de fato todos se haviam esquecido dela, pois estavam ocupados com a mais última
novidade. Ele mostrou a foto de uma jovem que usava uma panela na cabeça. Só
então a Bruxa olhou à volta e percebeu que muitos passantes levavam panelas na
cabeça. Umas grandes, outras mais justas, umas de metal brilhante, outras de
metal fosco. Tinha até umas coloridas.
Que maçada!
O que tinha passado desapercebido à Bruxa era um traço
fundante no comportamento das pessoas às quais ela fora apresentada: a atração
pela novidade se acaba tão logo o item disponibilizado é devorado com frenesi. Aos glutões, cujo paladar logo se entedia do prato oferecido, são
trazidas as próximas novidades, e as seguintes, e outras mais, ao infinito.
Àquelas alturas, a jornalista, promovida pelo último belo achado - a própria Bruxa - , muito provavelmente
já estaria em outras paragens, à caça de outras figuras exóticas, para ampliar seu currículo.
Por sua vez, à Bruxa, banida por um ano do convívio com a
comunidade das bruxas e já esquecida pelo seu fiel público citadino, não restou outra
opção que não a de providenciar uma panela, metê-la na cabeça, e perder-se em
meio à multidão que transita pelas ruas. Seguiu, anônima, destituída
daquilo que fazia dela singular, buscando caminhos para reencontrar modos
próprios de ser e estar no mundo.
Os labirintos da cidade lhe pareceram muito mais difíceis
de serem percorridos e reconhecidos que os labirintos da floresta...
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