domingo, 6 de janeiro de 2013

A Bruxa e a Jornalista


Às Madame Mims que ainda resistem, por aí,
 preservando suas singularidades.

Já faz muito tempo, chegou-me às mãos uma história em quadrinhos que me instigou a pensar muitas coisas sobre a cultura urbana, a sociedade do espetáculo, a lógica do mercado. Já não sei onde foi parar a revistinha, também não saberia ser fiel à história original. Por isso a reinvento, realçando certas cores e urdindo traços que me ajudem a aproximá-la mais das minhas questões e perguntas. Que se me permitam tais liberdades. A história trata de um conjunto de eventos desencadeados a partir do encontro entre duas personagens cujos mundos são muito distintos: a Bruxa e a Jornalista.

A Bruxa era uma velhota que vivia quase isolada numa floresta, ocupada com suas plantas, seus animais e as fórmulas secretas de suas bruxarias. A vida era boa e seguia sem maiores sustos - além daqueles resultantes de alguma poção com efeito indesejado. Até o dia em que a Jornalista, integrando um tour de ecoturismo, perdeu-se do seu grupo e dos guias, embrenhando-se na mata. Depois de muito tempo tentando encontrar o caminho de volta, saiu no quintal da Bruxa.

Como primeira reação, a Jornalista animou-se por ter encontrado alguém em meio à selva. Sentiu-se a salvo. Em seguida, foi tomada por um certo déjà vu, talvez sentindo-se a própria Maria, desta vez desacompanhada do parceiro João, chegando a uma estranha casinha (embora não fosse feita de doces...) habitada por uma ainda mais estranha criatura. Quase sentiu medo. Afinal, ali, sem maiores contatos sociais, a Bruxa não se preocupava muito com a aparência: os cabelos quase grisalhos despenteados, a blusa muito solta por fora da saia, a saia muito larga de tecido escuro surrado pendia até o chão, e as chinelas batendo-se contra o piso iam conversando uma com a outra pec-pepec-pec-pepec-pec-pepec às passadas irregulares dos pés que as calçavam. Um gato, uma coruja, um sapo, e outros animais pouco habituais para os habitantes da cidade compartilhavam o espaço com ela.

A Bruxa também não gostou nada da novidade, tão logo descobriu a visitante nas redondezas. Não deixou dúvidas quanto ao desagrado: declarou que se fosse dali! Mas a moça não podia, pois não sabia como ir embora. Pediu para ficar só um pouquinho, enquanto retomasse o fôlego, bebesse um gole de água. Pediu, também, que ensinasse a saída daquele labirinto verde que lhe afigurava a floresta.

Fazer o que? A moça ficou, um pouco. E demorou-se pouco mais, e foi delongando a estadia, só mais um pouquinho, à medida em que ia descobrindo, com fascinação, o quão interessante era a Bruxa, e o quanto esse achado poderia lhe render bons frutos.

Aqui vale uma pausa para algumas observações. Chama-me a atenção a sofreguidão com que buscamos a novidade, o singular, o desconhecido, tomando tais referências como a saída para a mesmice, o rotineiro. Novidade como remédio para a rotina: a primeira, mercadoria buscada por consumidores em vias de se entediar a cada instante; a segunda, a ameaça que ronda os dias, temida por consumidores aflitos, pressionados a mostrar imagens novas, a relatar a última sensação impressionante, ou registrar a mais recente constatação transformadora de seu modo de ser e estar no mundo... Mas a corrida em busca da novidade, do diferente, está também entre os produtores culturais, entre aqueles que assumem os papéis de cientistas e intelectuais, capazes de produzir interpretações sofisticadas sobre sua realidade... Como se já tivéssemos compreendido o bastante o que nos cerca, como se já nos conhecêssemos o suficiente, e às paisagens familiares aos nossos quotidianos... Puis...

A Jornalista entendeu estar diante de uma pessoa cujo estilo, cujos afazeres, cujo modo de vida eram desconhecidos das gentes da cidade. Anunciá-la no contexto urbano poderia lhe render boas matérias. A mais, ela faria a gentileza de dar visibilidade à Bruxa, trazendo-a ao contato com milhares de pessoas, que poderiam conhecê-la, aprender com ela. O desconforto inicial sentido pela velha senhora foi dando lugar à curiosidade sobre como seria a cidade, como seriam seus habitantes. E também à vaidade por ter seu mundo reconhecido por alguém que vinha de longe, que conhecia outros lugares, e tinha parâmetros para separar as coisas relevantes das coisas não relevantes. Baixou a guarda. Mostrou algumas poções. Explicou as funções de algumas plantas, os movimentos das estações, as relações com os animais. A jornalista anotou tudo, sem perder qualquer detalhe. Embora não se arvorasse a produzir relatórios científicos, mas textos jornalísticos, realizou o que muitos pesquisadores chamariam de etnografia intensiva.

Ao final de alguns dias, seguiu de volta para a cidade, portando dados aos quais ninguém antes dela tivera acesso. Escreveu matérias, explicou o que vira, despertou a curiosidade dos leitores que desejaram conhecer a Bruxa pessoalmente. Então ela retornou à floresta, aprendido já o caminho, e convidou a estranha senhora a participar de programas de entrevista, a serem veiculados em canais abertos e fechados de televisão, circuitos de internet, além das matérias a serem veiculadas em jornais e revistas. Curiosa com o que se descortinava à sua frente, a Bruxa cuidou das plantas, apagou o fogo, fechou o bocal do poço, cerrou janelas e portas de sua pequena casa, e afastou-se dali - coisa que nunca fizera antes - levada pela Jornalista.

Tudo aconteceu muito rapidamente: a Bruxa tornou-se o assunto principal entre as pessoas, teve seu rosto estampado na capa de revistas, programas discutiam suas receitas no uso de plantas, estilistas produziram coleções inspiradas em seu desapego ao fútil. Ela passou a ser chamada a falar em programas ao vivo, em redes de televisão, tratando de questões sobre o amor, relacionamentos, saúde, autoajuda, nova era, meio ambiente, autossustentabilidade, comportamento, consumidores compulsivos... É claro que ela nunca tinha muito tempo para falar, logo era interrompida pelos apresentadores, que passavam a palavra para o auditório mais animado, ou algum repórter de plantão que tivesse uma informação de última hora para acrescentar à discussão.

A Bruxa era conhecida nas ruas. Alegrava-se cumprimentando os passantes, que se dirigiam a ela como velhos amigos, parentela extraviada, quem sabe? Como ela não tivera, antes, a oportunidade de conhecer aquelas gentes tão acolhedoras? Quanto tempo perdido!

Mas houve quem não tivesse gostado daquela história toda: a diretoria da Associação Internacional das Bruxas, que acionou a Comissão de Ética e convocou a Bruxa a uma reunião de caráter extraordinário. Ela então voltou à floresta, para se explicar sobre as aventuras dos últimos tempos. No entanto, as explicações dadas não foram suficientes para entusiasmar, muito menos para convencer a congregação sobre sua conduta, pois aqueles segredos jamais poderiam ter sido trazidos a público. Apesar de alguns cuidados tomados por ela na seleção dos itens divulgados - apenas receitas ingênuas e de pouca expressão na cultura bruxesca - a sentença foi unânime: suspensa, durante um ano, de suas atividades, ficou proibida de fabricar qualquer poção, fazer qualquer feitiço, rogar qualquer praga, usar qualquer ferramenta de mágica, usar qualquer vegetal ou animal com poderes especiais. Ao final do período estipulado, deveria se apresentar, novamente, à Comissão de Ética, para ser reconduzida às suas funções.

No fundo, no fundo, a Bruxa não ficou chateada. Ela pensou que poderia viver muito bem, durante esse ano, entre as pessoas que a admiravam, queriam saber sua opinião, e imitavam sua forma de se vestir, falar, explicar o mundo. Ao final do castigo, retomaria sua vidinha na floresta, com seus animais, plantas e poções. Sem reclamar, acatou a sentença, e voltou para a cidade, ansiosa por reencontrar seus fãs.

Chegando, começou a cumprimentar os passantes, que a olharam de modo estranho, sem corresponder ao seu entusiasmo. Então ela notou que já ninguém usava roupas parecidas com as dela. O que ocorrera durante os dias em que estivera fora? Na banca, outros rostos estavam estampados nas capas das revistas e nos jornais. Sem compreender, perguntou ao jornaleiro porque parecia que todos se haviam esquecido dela. Ouviu a confirmação: não parecia, de fato todos se haviam esquecido dela, pois estavam ocupados com a mais última novidade. Ele mostrou a foto de uma jovem que usava uma panela na cabeça. Só então a Bruxa olhou à volta e percebeu que muitos passantes levavam panelas na cabeça. Umas grandes, outras mais justas, umas de metal brilhante, outras de metal fosco. Tinha até umas coloridas.

Que maçada!

O que tinha passado desapercebido à Bruxa era um traço fundante no comportamento das pessoas às quais ela fora apresentada: a atração pela novidade se acaba tão logo o item disponibilizado é devorado com frenesi. Aos glutões, cujo paladar logo se entedia do prato oferecido, são trazidas as próximas novidades, e as seguintes, e outras mais, ao infinito. Àquelas alturas, a jornalista, promovida pelo último belo achado - a própria Bruxa - , muito provavelmente já estaria em outras paragens, à caça de outras figuras exóticas, para ampliar seu currículo.

Por sua vez, à Bruxa, banida por um ano do convívio com a comunidade das bruxas e já esquecida pelo seu fiel público citadino, não restou outra opção que não a de providenciar uma panela, metê-la na cabeça, e perder-se em meio à multidão que transita pelas ruas. Seguiu, anônima, destituída daquilo que fazia dela singular, buscando caminhos para reencontrar modos próprios de ser e estar no mundo.

Os labirintos da cidade lhe pareceram muito mais difíceis de serem percorridos e reconhecidos que os labirintos da floresta...



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