quinta-feira, 5 de abril de 2012

Declaração de fé e uma crítica à visão antropocêntrica de Deus


a propósito da Semana Santa, em curso


Eu tinha 11 anos. Nos domingos pela manhã, ia à missa das 8h, e na volta assistia à aula dominical da Igreja Batista, mantenedora da escola na qual eu estudava durante a semana. Numa dessas aulas, a professora, que também era minha professora de Ensino Religioso, e esposa do Pastor, pediu que levantasse a mão quem fosse cristão. Aquela pergunta provocou inquietações em mim: o que implicava, de fato, ser cristão? As demais crianças não hesitaram em responder. Mas eu não estava muito certa de minhas convicções quanto a ser ou não ser cristã. E me inquietava com a ideia de levantar a mão, declarando uma convicção que, na verdade, vacilava entre algumas poucas certezas. Ao mesmo tempo, não corri o risco de assumir publicamente aquelas dúvidas entre pessoas movidas por tanta fé e tantas certezas, que se sentiam escolhidas entre os mortais para serem salvas quando do fim do mundo. Na dúvida, e ante a possibilidade, qualquer que fosse, de salvação no julgamento final, eu tomaria as providências necessárias para me proteger. E começaria ali mesmo, em plena aula dominical, entre crianças convictas de sua fé: levantei a mão, assumindo de público minha cristianidade.

Nalgum domingo à noite, por esses mesmos dias, assistindo ao culto, senti-me comovida pela possibilidade do amor, da fé, anunciados em discurso exaltado e vibrante. Quem aceita o Cristo no coração? Ora, se o Cristo é sinônimo de amor, de fé, de sintonia e encontro com Deus, que tola seria eu para não aceitar? À saída da igreja, me esperava uma ficha para ser preenchida, para fins de recolha do dízimo. Mas o Cristo que pulsara em mim não tinha contas a pagar, nem se submetia a prestações. Estava ligado, sim, ao sentido de vida que move os seres, e o de amor que os liga. Declinei do preenchimento, e continuei me perguntando, em silêncio, o que significava ser cristão.

Deparei-me com muitas situações, desde então. Frequentei centros espíritas, participei de rituais indígenas, fiz primeira comunhão, deixei-me conduzir no ritual de batismo mergulhada em água. Sem chegar a crer plenamente. No entanto, sem deixar de crer. Mas crer em que? De certo que minha fé sempre foi encaminhada a endereço diverso em relação aos demais participantes de cada um dos diferentes rituais. Qual endereço? Onde eu encontraria abrigo? Antes disso: encontraria, eu, abrigo nalgum lugar?

Mais recentemente compreendi o que me causa desconforto no arcabouço do pensamento cristão: a visão estritamente antropocêntrica da fé e seu sentido de transcendência. Não posso comungar um credo que tem seu princípio e seu fim na saga humana (está certo que não é pouca nem pequena...), quando o universo de estende ao infinito tanto na direção do micro, no mundo que supomos conhecer, ao menos onde vivemos e convivemos com mistérios insondáveis entre desconhecidas formas de vida, quanto em direção ao macro, na infinitude de planetas, galáxias, universos sem fim, mundos de que sequer temos noção de dimensões, fronteiras, marcos, tempos e espaços inconcebíveis para nossos limites tão humanos.

Que Deus seria esse que se ocuparia tão somente dos humanos, sendo sua criação tão infinitamente maior do que a própria humanidade?

Talvez eu prefira pensar numa força divinal que possa se apresentar de infinitas formas ante cada forma de vida das infinitas existentes. Sem nome, nem forma, nem rosto, não é homem nem mulher, não é bom nem mau, pulsa em cada manifestação da vida, desde as mais ínfimas até as tão enormes e imponderáveis. Vibra em e faz vibrar tanto bactérias quanto humanos, mesmo quando a sobrevivência das primeiras concorra com a sobrevivência destes últimos. Aliás, não tem contrato exclusivo de prestação de serviços para atender aos desejos e aplacar os temores humanos. Não atua nos mercados financeiros, não conhece normas sociais, nem estruturas hierárquicas de poder estritamente humanas.

Operando além, muito além das fronteiras estreitas disponíveis a alguma interpretação possível pela cognição humana, não se encontra nem dentro, nem fora: é o próprio universo, o que quer que isso signifique, quaisquer sejam as suas dimensões espaço-temporais. (N)ele. E por isso mesmo, (em mim) eu, que também (estou no) sou o universo. Eu, parte integrante do todo sem fim. Eu também portadora dos seus mistérios, de suas infinitudes. E isso faz com que me sinta irreversivelmente vinculada ao mundo, seus movimentos, tremores, pavores, encantamentos. E a toda a humanidade, e a toda forma de vida.

Isso faz com que minha participação nos rituais das diversas igrejas seja movida pela mais funda sinceridade, ainda que não pela mesma fé que move os demais. O elo que nos liga precede e sucede qualquer explicação humana a qualquer mistério: faz parte dos próprios mistérios aos quais me entrego, pelos quais me deixo conduzir – não por vontade própria, mas por inevitabilidade...

Pensar/sentir desse modo muda radicalmente minha percepção dos fenômenos em geral, das metamorfoses, dos rearranjos dos elementos. De alguma forma tudo ganha uma densidade maior, e ao mesmo tempo se torna mais leve. Morrer, nascer, viver são parte de um único processo que não tem fim, tudo interligado, em transformação contínua.

Assim seja!


3 comentários:

  1. Olá professora,

    Mt bonito seu texto, me identifiquei bastante. Tb tive uma forte educação religiosa, mas católica. E passar disso para uma visão mais ampla nem sempre é um processo fácil ou simples.

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  2. Belíssimo texto-em-tese! Parabéns!...

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