a propósito da Semana Santa, em curso
Eu tinha 11 anos. Nos
domingos pela manhã, ia à missa das 8h, e na volta assistia à aula dominical da
Igreja Batista, mantenedora da escola na qual eu estudava durante a semana.
Numa dessas aulas, a professora, que também era minha professora de Ensino
Religioso, e esposa do Pastor, pediu que levantasse a mão quem fosse cristão. Aquela
pergunta provocou inquietações em mim: o que implicava, de fato, ser cristão?
As demais crianças não hesitaram em responder. Mas eu não estava muito certa de
minhas convicções quanto a ser ou não ser cristã. E me inquietava com a ideia
de levantar a mão, declarando uma convicção que, na verdade, vacilava entre algumas
poucas certezas. Ao mesmo tempo, não corri o risco de assumir publicamente
aquelas dúvidas entre pessoas movidas por tanta fé e tantas certezas, que se
sentiam escolhidas entre os mortais para serem salvas quando do fim do mundo.
Na dúvida, e ante a possibilidade, qualquer que fosse, de salvação no
julgamento final, eu tomaria as providências necessárias para me proteger. E
começaria ali mesmo, em plena aula dominical, entre crianças convictas de sua
fé: levantei a mão, assumindo de público minha cristianidade.
Nalgum domingo à noite, por
esses mesmos dias, assistindo ao culto, senti-me comovida pela possibilidade do
amor, da fé, anunciados em discurso exaltado e vibrante. Quem aceita o Cristo
no coração? Ora, se o Cristo é sinônimo de amor, de fé, de sintonia e encontro
com Deus, que tola seria eu para não aceitar? À saída da igreja, me esperava
uma ficha para ser preenchida, para fins de recolha do dízimo. Mas o Cristo que
pulsara em mim não tinha contas a pagar, nem se submetia a prestações. Estava
ligado, sim, ao sentido de vida que move os seres, e o de amor que os liga.
Declinei do preenchimento, e continuei me perguntando, em silêncio, o que
significava ser cristão.
Deparei-me com muitas
situações, desde então. Frequentei centros espíritas, participei de rituais
indígenas, fiz primeira comunhão, deixei-me conduzir no ritual de batismo
mergulhada em água. Sem chegar a crer plenamente. No entanto, sem deixar de
crer. Mas crer em que? De certo que minha fé sempre foi encaminhada a endereço
diverso em relação aos demais participantes de cada um dos diferentes rituais.
Qual endereço? Onde eu encontraria abrigo? Antes disso: encontraria, eu, abrigo
nalgum lugar?
Mais recentemente compreendi
o que me causa desconforto no arcabouço do pensamento cristão: a visão
estritamente antropocêntrica da fé e seu sentido de transcendência. Não posso comungar
um credo que tem seu princípio e seu fim na saga humana (está certo que não é
pouca nem pequena...), quando o universo de estende ao infinito tanto na
direção do micro, no mundo que supomos conhecer, ao menos onde vivemos e convivemos
com mistérios insondáveis entre desconhecidas formas de vida, quanto em direção
ao macro, na infinitude de planetas, galáxias, universos sem fim, mundos de que
sequer temos noção de dimensões, fronteiras, marcos, tempos e espaços
inconcebíveis para nossos limites tão humanos.
Que Deus seria esse que se
ocuparia tão somente dos humanos, sendo sua criação tão infinitamente maior do
que a própria humanidade?
Talvez eu prefira pensar numa
força divinal que possa se apresentar de infinitas formas ante cada forma de
vida das infinitas existentes. Sem nome, nem forma, nem rosto, não é homem nem
mulher, não é bom nem mau, pulsa em cada manifestação da vida, desde as mais
ínfimas até as tão enormes e imponderáveis. Vibra em e faz vibrar tanto
bactérias quanto humanos, mesmo quando a sobrevivência das primeiras concorra
com a sobrevivência destes últimos. Aliás, não tem contrato exclusivo de
prestação de serviços para atender aos desejos e aplacar os temores humanos.
Não atua nos mercados financeiros, não conhece normas sociais, nem estruturas
hierárquicas de poder estritamente humanas.
Operando além, muito além
das fronteiras estreitas disponíveis a alguma interpretação possível pela
cognição humana, não se encontra nem dentro, nem fora: é o próprio universo, o
que quer que isso signifique, quaisquer sejam as suas dimensões
espaço-temporais. (N)ele. E por isso mesmo, (em mim) eu, que também (estou no) sou
o universo. Eu, parte integrante do todo sem fim. Eu também portadora dos seus
mistérios, de suas infinitudes. E isso faz com que me sinta irreversivelmente vinculada
ao mundo, seus movimentos, tremores, pavores, encantamentos. E a toda a
humanidade, e a toda forma de vida.
Isso faz com que minha participação
nos rituais das diversas igrejas seja movida pela mais funda sinceridade, ainda
que não pela mesma fé que move os demais. O elo que nos liga precede e sucede
qualquer explicação humana a qualquer mistério: faz parte dos próprios
mistérios aos quais me entrego, pelos quais me deixo conduzir – não por vontade
própria, mas por inevitabilidade...
Pensar/sentir desse modo
muda radicalmente minha percepção dos fenômenos em geral, das metamorfoses, dos
rearranjos dos elementos. De alguma forma tudo ganha uma densidade maior, e ao
mesmo tempo se torna mais leve. Morrer, nascer, viver são parte de um único
processo que não tem fim, tudo interligado, em transformação contínua.
Assim seja!
Olá professora,
ResponderExcluirMt bonito seu texto, me identifiquei bastante. Tb tive uma forte educação religiosa, mas católica. E passar disso para uma visão mais ampla nem sempre é um processo fácil ou simples.
Que lindo texto!
ResponderExcluirBelíssimo texto-em-tese! Parabéns!...
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