terça-feira, 17 de abril de 2012

Jamais saberemos como seria se não tivesse sido como foi... ou: a flecha do tempo é irreversível.

Para Pina Bausch, Win Wenders e Christina Garcia

Marília, a louca da corte. Teatro Garagem. Brasília.1987.
Direção: Delson Antunes
No elenco: Ivan Marques, Muna Amad, Moisés, Dina Brandão, José Alves Neto, Feitosa, Kalissa Nawá.


Roqueiros, prostitutas, suicidas, figuras góticas, noivas abandonadas, políticos decadentes circulavam entre andaimes de uma construção jamais terminada. Desfiavam versos que brotavam dos submundos da capital federal, nos estertores da ditadura militar. A corte habitada por Marília louca...


Durante o espetáculo, num certo momento, eu saía do palco, e me posicionava ao lado da plateia. Os demais atores desenvolviam a cena, preparando o ambiente para que eu começasse a interação com pessoas do público. Quando um rapaz vestido de policial subia na plataforma mais alta, eu sabia onde cada um estava posicionado, e esperava pelo som seco da chave sendo acionada pelo operador da mesa de luz. Palco e público eram inundados por luz. Aproveitando o susto, eu saía, atirando perguntas aleatoriamente, contra uma e outra pessoa. Esbravejava. Na próxima vez que eu for a Brasília, eu trago um rato do cerrado para você!


Fazia uma meia lua, e ia retornando aos poucos para o palco. Eu não precisava olhar: sabia para onde cada um tinha seguido, enquanto eu executava a cena. Dávamos curso ao espetáculo, formando uma espécie de escada humana, que era escalada por outra atriz, enquanto declamava versos desesperados. O momento já era outro, outra tensão, outra intenção.

Na minha sequência, enquanto aguardava o momento de interagir com a plateia, de fora, por um instante, eu podia observar o espetáculo, antevendo os movimentos de cada um. Eu já houvera internalizado toda a dinâmica das cenas, as passagens de uma para a outra, e as sequências todas. Podia fechar os olhos, e imaginar o espetáculo do início ao fim. No entanto, me inquietava constatar que, enquanto estava ali, observando os demais, eu vislumbrava um espetáculo que não era o mesmo vivido, experimentado, imaginado pelos outros atores do elenco. Mesmo com os olhos fechados, não podia imaginar de outro modo que não desde o lugar que eu ocupava - o que eu conhecia, o que minha memória reconhecia. Qualquer esforço para perceber o espetáculo do ponto de vista dos demais era em vão: o ponto de vista de outro, que não o meu, se me escapava, mesmo que eu já trouxesse, inscrita no corpo, a cartografia dos movimentos, dos percursos de cada um, entrecruzando-se com os meus. O bailado que executávamos, eu o reconhecia sempre a partir de mim. E isso me soava quase como sentença, condenação, prisão.

Como seria ver a cena em que eu interagia com o público desde a plataforma ocupada pelo ator vestido de policial? Ou do posto ocupado pela menina que subiria a escada humana, e já se preparava para isso, enquanto eu executava minha cena? A totalidade escapa entre os vãos da minha percepção...

Mais que isso: se, em lugar de seguir um percurso, eu seguisse outro, em que eu teria alterado o curso dos fatos? Não é possível saber, pois não há como verificar, comparar as diferentes possibilidades em igualdade de condições, inclusive as temporais.

A flecha do tempo é irreversível, e não há qualquer simetria possível nas experiências humanas. Nas não humanas? Jamais saberei...



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