segunda-feira, 27 de junho de 2011

Nunca fui muito afeita às paixões avassaladoras



Nunca fui muito afeita às paixões avassaladoras. Desconfio dos amores que tomam de assalto. Posso até ceder a eles, mas, para isso, precisam permanecer no tempo, serem portadores de alguma persistência. E os fios vão se enlaçando devagar, quase sem se perceber. Os fios são sempre delicados, delgados, frágeis. Na repetição ganham consistência, se fortalecem. Prefiro o morno aconchego dos fins de tarde entre murmúrios, aos gritos explosivos da embriaguez desmedida.

Talvez por isso eu esteja, no mais das vezes, mais só do que pareça. Talvez por isso meus amores tenham os ares de vida toda. E tenham sido tão poucos. Talvez por isso, naquela noite eu estivesse distraída, divertindo-me em observar os movimentos e as manifestações intensas de afeto e paixão. Afinal, um sarau de poesia no porão de um espaço chamado Cozinha das Almas não poderia ser ameno, em tons pastéis. No palco, revezavam-se poetas vindos dos quatro cantos do país, recitando suas produções. Música, dança e outros números desfilavam sob a luz avermelhada do ambiente.


Uma moça de pele clara e cabelos negros notou-me. Poetiza, movida a encantamentos, cercou-me de gestos afetuosos, versos, e risos rasgados. Deixou-se enlevar pelas falas do meu companheiro, e reuniu-se a nós, determinada a tornar-se amiga e confidente de infância. Eu ria. Seu arroubo me empurrava à posição defensiva. Determinada a ouvir, perceber, mais do que ganhar a linha de frente de qualquer colóquio, eu a acompanhei no seu percurso, atenta aos seus movimentos, o timbre de sua voz, o olhar. Ao transbordamento de suas emoções.

No dia seguinte, nos procurou, e reafirmou seu encantamento por mim. No ano seguinte, retornou, mais apaixonada ainda por seu amado, e também por mim. Entre um evento e outro, havíamos nos falado ao telefone. Ensaiávamos alguma aproximação, na qual ela tinha mais pressa que eu. No segundo sarau de que participei, brinquei mais, cheguei a cantar. E ela declamou um poema de improviso para mim, que, sem registro escrito, perdeu-se na vibração de todas as outras falas misturadas no grande salão.

Antes de partirem, estiveram conosco ela e seu amado, em nossa casa: o passo definitivo para os acolhermos em nossa privacidade. Passamos a nos falar com alguma regularidade. Naquele ano ela retornou uma ou duas vezes, e esteve conosco por longas horas de entusiasmo. Compartilhando memórias, utopias, sonhos. Tudo parecia muito pouco para o tamanho de sua fome e sua urgência. Ela precisava sempre de maior intensidade. Eu a acompanhava com vagar, e a acolhia em sua inquietação.

Até que intimidades começaram a se derramar: segredos, medos, angústias, sustos, silêncios inconfessos pulularam entre as expressões de alegria e afeto. E foram acolhidos com o mesmo cuidado e vagar. O desnudamento parece tê-la assustado mais que a mim. Não sei ao certo. O fato é que se espantou, partiu sem retornar, nem dar notícias. O vento intenso de sua passagem ainda movia algumas galhagens em mim, mas ela já não estava, não estaria, não voltaria a estar.

Não mais tive notícias suas. Seu amor intenso esvaiu-se. Perdeu-se. E ela de mim.

Nunca fui mesmo muito afeita a paixões avassaladoras.



5 comentários:

  1. Acabei de ler, "A Mulher do Viajante do Tempo". Para ela, o amado não consguia permanecer no tempo, mas o amor, existia..... BJs

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  2. Me lembrei da comparação (a entrevista que você postou no fb outro dia) do ser humano às pequenas chamas que ardem e se apagam cada um em seu momento próprio. O foguinho da moça seria intenso ou, ao contrário, tênue demais para se extinguir tão depressa...

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  3. oi tia, muito legal seu blog.

    Belo texto. lendo-o, lembrei:

    "é na soma do seu olhar
    que eu vou me conhecer inteiro
    se nasci pra enfrentar o mar
    ou faroleiro"

    bjs :)

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  4. Oi, tia. Fiquei feliz de você ter gostado da cantiga. Aproveito par te mostrar uma poesia que acabo de fazer, um pouco inspirado nesse seu texto aqui, um pouco no significado que o trecho da música do chico tem para mim.

    A SOMA DO SEU OLHAR

    Canto do mar
    encantos, mil léguas.
    Sou porto
    de onde se parte,
    por onde se chega.
    Sou gente em quem outros naufragam,
    navegam,
    se quedam.

    Bjs.

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  5. Paulo, meu querido, foi um presente encontrá-lo por estas redes, e conhecer suas escritas, tão sensíveis. Quero ler mais! Um beijo carinhoso!

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