quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Perfume de flores e a perda do olfato


 Para Rutinha, meu amor

Logo que minha mãe faleceu, há pouco mais de um ano, eram frequentes os episódios quando eu sentia cheiro de flores. Então eu perguntava a quem estivesse por perto se também sentia o perfume. Só eu sentia.

Fala-se que quando sentimos perfume de flores, sem que haja flores por perto, sua origem está na presença de anjos ou de boas almas a nos protegerem. Quando comentava o perfume que sentia, em geral as pessoas atribuíam à possível presença da minha mãe, a nos proteger. Era um alento para a falta que ela fazia. Eu acolhia a explicação com muito afeto, embora pairasse sempre alguma dúvida sobre a efetiva origem da sensação.

Aos poucos, os episódios com o perfume de flores foram ficando espaçados entre si, até que não me lembro quando teria ocorrido pela última vez. Parei de sentir o perfume de flores. E parei de sentir os demais odores: perdi o olfato. Demorei um pouco para me dar conta do que ocorrera.

Eu sempre tive o olfato muito aguçado. Preparando o almoço, por exemplo, eu me orientava muito mais pelo olfato para perceber o ponto de cozimento dos alimentos, do pelo tempo, ou pelo olhar. Eu sabia quando o arroz já estava pronto pelo cheiro. Nem olhava para decidir desligar o fogo a panela ou não. Do mesmo modo, eu sabia quando a dama-da-noite se abria, na varanda, mesmo sem ter avistado a planta nos últimos dias. Seu perfume eclodia pela casa, e eu sentia alegria ao percebê-lo.

Experimento agora uma sensação estranha. É como se o mundo à volta tenha ficado silencioso do ponto de vista dos odores.

Provavelmente não fosse a presença mágica de minha mãe à minha volta que tenha provocado a distorção da percepção olfativa, fazendo-me sentir perfume de flores. Suspiro aliviada. Se era uma distorção do olfato, agradeço ao organismo por ter trazido perfume de flores e não cheiros desagradáveis de material orgânico em decomposição.

Penso nas tantas sequelas deixadas pela pandemia provocada pela COVID, sequelas de ordem social, coletiva, de ordem individual, tanto comportamental quanto orgânica, somática. Embora eu tenha tomado todas as vacinas, tive dois episódios leves da virose. Uma das possibilidades é que a perda do olfato seja uma das sequelas da doença. Anosmia é o nome da perda total do olfato, com consequências também no paladar. Fantosmia qualifica a distorção olfativa, quando a pessoa sente um odor que não está presente. O perfume de flores que eu sentia, por exemplo.

Esse quadro requer atenção, implicando em questões de segurança. Quase sempre subestimamos a importância das informações olfativas com que lidamos correntemente.

Agora preciso aprender a me relacionar com um mundo do qual não consigo perceber os odores, embora seus odores estejam todos por aí, sinalizando, informando, alertando... Isso apresenta riscos, muitos, com os quais ainda vou descobrir como lidar.

 




domingo, 19 de janeiro de 2025

Duas Brasílias: uma, de Oscar Niemayer; outra, de Lúcio Costa


Em geral, estando fora da capital federal, quando se fala sobre Brasília, a imagem de que se lembra, de pronto, é a da Esplanada dos Ministérios, ou os palácios, monumentos que carimbaram a imagem da cidade e que abrigam a vida política na esfera federal. Essa é a imagem que se tem de Brasília desde fora de seus territórios. Mas essa não é exatamente a Brasília que eu vivenciei e vivencio na condição de habitante desde o final dos anos 1970. Os caminhos que percorro, as imagens da cidade que ficaram tatuadas em minha experiência não têm monumentos, negociações políticas em gabinetes, disputas em púlpitos de palácios. Eu até vivenciei muitas manifestações políticas populares, mas fora dos monumentos e dos gabinetes: ganhando as avenidas largas, os gramados verdes, o céu cor azul-oceano.

No quotidiano, a vida se desenvolve entre uma paisagem tomada por árvores, plantas de várias escalas de altura, frutíferas, ornamentais, todas habitadas por pássaros os mais diversos, desde os pequeninos beija-flores até curicacas e araras barulhentas. As pessoas se encontram nos comércios locais, de pequeno porte. Crianças brincam nos parques locais, enquanto as mães conversam sobre amenidades.

Lembro da primeira vez que vim a Brasília, em 1976, e fiquei espantada, pois não avistava os prédios, tal a densidade da vegetação. Cadê a cidade? Àquela altura, a cidade ainda não tinha tantos prédios, mas os que existiam já se ocultavam entre árvores e plantas diversas. Ainda hoje tenho a mesma sensação atravessando a cidade. E essa sensação vem tomada por encantamento.

Desde a minha chegada, a cidade cresceu muito, o fluxo de automóveis é muitas vezes um problema para o deslocamento, apesar das vias largas e do desenho que tem em vista facilitar a movimentação. Foram criadas muitas novas vias, fazendo geometrias nem sempre fáceis de serem decifradas. Mas para alguém que habita uma das superquadras do Plano Piloto, gerir a vida quotidiana não é algo complicado, ao contrário. Sempre há um comércio local, onde podem ser buscados itens de emergência, em segurança. O deslocamento de pedestres é mais seguro que na maioria das capitais e outras grandes cidades, onde caminhar a pé pode ser sinônimo de rally, ou aventura arriscada.

Voltando a Brasília, em se tratando de sua criação, o nome mais referido é o do arquiteto Oscar Niemayer. De fato ele assinou boa parte dos projetos dos monumentos da cidade, dos edifícios referenciais. As imagens dessas construções constituem uma espécie de conjunto de marcas referenciais. Contudo, não chegam a integrar a vida quotidiana dos habitantes da cidade. Ninguém vai à Catedral todos os dias, nem ao Congresso Nacional, ou à Praça dos Três Poderes, a menos que trabalhe ali, ou de passagem, ou levando alguém para passear.

Dou-me conta, então, que a Brasília de Oscar Niemayer é a dos monumentos, mais visíveis para quem não habita a cidade: para as matérias jornalísticas, para o turismo, para os grandes eventos.

Por outro lado, sinto-me acolhida de modo especial ao perceber que a cidade por mim habitada foi pensada por Lúcio Costa, o mestre Lúcio Costa, a respeito de quem pouco se fala, poucos sabem, sequer lembram quando o assunto é Brasília. É dele o desenho, o plano urbanístico. É dele a concepção do Plano Piloto em quatro escalas: a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica. 

Ou seja, Niemayer assinou as obras de apenas uma dessas escalas, a monumental. As demais foram assinadas pelo discreto e genial urbanista Lúcio Costa, e asseguram a qualidade de vida de quem vive numa cidade pensada tendo em vista a melhor gestão do quotidiano.

Quando Brasília foi elevada à condição de Patrimônio Cultural da Humanidade, pela UNESCO, o que se registrou foi a articulação dessas escalas. Vamos a elas:

Escala Monumental – localizada ao longo do Eixo Monumental, concentra as principais atividades administrativas e políticas da unidade federativa e nacionais. Inclui a Praça dos Três Poderes, o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional, a Esplanada dos Ministérios, o Palácio Itamaraty, a Catedral, o Teatro Nacional e o Museu Nacional da República.

Escala Residencial – localiza-se ao longo do Eixão (oficialmente, Eixo Rodoviário), organizada nas chamadas Unidades de Vizinhança, cada qual formada por um conjunto de quatro superquadras. As superquadras, além dos prédios residenciais, incluem escolas, clubes, bibliotecas, igrejas, comércio local, dentre outros.

Escala Gregária – situa-se no cruzamento do Eixo Monumental com o Eixão. Ali estão vários setores, como o bancário, o hoteleiro, o comercial e o de diversões. No ponto zero do cruzamento, encontra-se a rodoviária urbana, de onde parte boa parte dos ônibus urbanos e se encontra a estação final do metrô.

Escala Bucólica – está presente nas outras três escalas, formada por áreas livres e arborizadas. Ela confere à capital federal o caráter de cidade-parque.

Caminho entre árvores e pássaros, grata a Lucio Costa por ter pensado uma cidade com essas feições. É essa a cidade que habito, não a cidade em sua escala monumental.

  





domingo, 29 de dezembro de 2024

Chegada do trem à estação, ou, mais de um século depois, os sustos provocados pela IA


 Multiplicam-se os relatos sobre a primeira sessão coletiva em Paris, quando os irmãos Lumière apresentaram os brevíssimos registros em filme do trem chegando à estação e de operários saindo da fábrica ao final do expediente. Sempre se destaca o susto das pessoas, especialmente ante a possibilidade de serem atropeladas pelo trem vindo em sua direção. Tal impressão repetiu-se em incontáveis sessões posteriores. E na medida em que os recursos técnicos e tecnológicos para a produção fílmica se ampliaram, as sessões no cinema ganharam potência nos filmes de ficção e não ficção, conduzindo seus públicos a sensações intensas, surpresas, sustos, vertigens.


A grande questão está na ideia, recorrente ainda hoje entre a maioria das pessoas, de que a imagem em movimento projetada no cinema tem potência de registro de verdade. O que é um equívoco, mesmo quando se tratem das assim nomeadas produções documentais. Estas, apesar de serem produzidas seguindo um protocolo diferenciado em relação às ficcionais, não são prova de verdade, mas discurso construído a partir de pontos de vista muito específicos sobre determinadas questões. Muitas vezes, os filmes documentais dizem menos de seus contextos do que filmes ficcionais, até os filmes fantásticos, de ação ou de ficção científica, que, embora não tenham pretensão de provar quaisquer verdades, acabam sendo testemunhos potentes das circunstâncias nas quais são concebidos e realizados.


Assim, tem-se em conta que vídeos e outras peças do audiovisual compartilhados à larga nas mídias mais diversas não têm, no ponto de partida, o pressuposto de prova de verdade. Nem o pressuposto, nem o compromisso. São discursos, defendem certos pontos de vista, e para tanto fazem uso dos elementos constituidores das imagens em movimento sonorizadas. Quase sempre, contudo, reivindicam a condição de verdade, como parte do esforço de convencimento de suas argumentações.


Nesses termos, os recursos propiciados pelas plataformas de inteligência artificial, disponibilizadas para usos os mais diversos, incluindo produção audiovisual, provocam surpresas e impressionam na mesma escala que a projeção dos filmes dos irmãos Lumière no final do século XIX. E a base dessa capacidade de impressionar está, sobretudo, assentada na constatação de que imagem em movimento como prova de verdade pode ser uma farsa produzida por estruturas cada vez mais complexas da tecnologia digital. Tais estruturas podem produzir os discursos que quiser, à disposição de usuários com os mais diversos propósitos, ou, até quem sabe, à disposição das próprias máquinas, reiterando o sobressalto, também antigo, de a humanidade ser suplantada, ou mesmo extinta por suas criações.


Parece, mesmo, que ainda estamos ali, naquele 28 de dezembro de 1895, sem sair do Salon Indien do Grand-Café de Paris desde então, sob os efeitos da projeção dos breves filmes realizados por Auguste e Louis Lumière, fazendo uso de sua invenção, o cinematógrafo.

 



segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Sobre linguagem neutra e outras considerações

Ah, a língua que falamos, quantos mistérios guarda, de quantas histórias é entrelaçada, de que modos sistematiza nossos valores e nosso imaginário!

O modo como uma língua se organiza sistematiza as formas de pensamento da comunidade que dela faz uso para se comunicar. Mais do que se comunicar: para sistematizar o pensamento, para organizar aquilo que conhece, que sabe sobre o mundo, e para estruturar o mundo em que cada qual se encontra. As relações entre a língua, os modos como se faz uso dela e a comunidade falante são dinâmicas, em transformações mútuas e contínuas. Uma mesma língua falada num determinado momento histórico, por uma comunidade, estará modificada duas décadas depois, assim como também estará sua comunidade.

Pensar numa cultura, numa comunidade ou numa língua fixadas no tempo, sem modificações, é pensá-las mortas.

Como soe ser com as culturas de um modo geral, as dinâmicas de transformações se dão nas tensões estabelecidas entre forças que tendam à conservação do que já está posto e as forças que busquem instaurar o novo. A instauração do novo, sem resistência, causa tantos danos quanto a manutenção do já posto sem renovação. Em meio a tais tensões, a vida em sociedade se institui, em efervescência.

As diferentes línguas propiciam diferentes percepções e concepções de realidade, que não são passíveis de tradução entre si. Ou seja, cada língua oferece ferramentas específicas para organizar o pensamento e a percepção do mundo de modos específicos.

Tendo isso em conta, e considerando a língua portuguesa falada no Brasil, podemos buscar algumas especificidades e forças transformadoras observadas nas últimas décadas. Por exemplo, o fato de que o modo subjuntivo da conjugação verbal vai caindo em desuso na mesma medida em que avançamos no aprofundamento das tecnologias para a organização das informações, do pensamento e, mais recentemente, dos textos. O modo subjuntivo apresenta uma possibilidade em grande medida inacessível para máquinas que operam na linguagem binária. Por exemplo, entre o que foi e o que não foi, o subjuntivo apresenta possibilidades, naquilo que poderia ter sido, ou teria sido, ou seria...

Fico sempre impressionada como não há quem se levante em defesa do subjuntivo. Não raro, percebo expressões de estranhamento ante a própria terminologia: de que trata o subjuntivo? Avançamos, afinal, para um mundo sem as nuances temporais que essa modalidade verbal permite. Quem sente falta, a propósito?

Curiosamente, se, no tocante aos modos e tempos verbais, o uso da língua portuguesa no Brasil tende a essa simplificação, traduzida no desuso do subjuntivo, que resulta na redução às escolhas entre a afirmação e a negação diretas, por outro lado, ultimamente se tem testemunhado o debate a respeito da definição de gênero, delimitado na perspectiva binária, conforme as referências normativas dominantes em nossa sociedade: ele ou ela, homem ou mulher, macho ou fêmea.

Algumas línguas contemporâneas abrem algumas brechas para o eventual uso de pronomes neutros, muitos desses, contudo, destinados à referência de objetos e outras formas substantivas que não pessoas: it, no inglês, por exemplo. Ao mesmo tempo, ganham força as discussões sobre as orientações de gênero na sociedade contemporânea ocidental, abrindo flancos para a manifestação de orientações outras que se situam fora da clássica orientação homem-mulher, masculino-feminino, atrelada às formas biológicas de formação.

As pressões e as demandas sociais tomam a frente. Logo atrás encontram-se as normas sociais, seguida da legislação, que tentam dar respostas às demandas. A língua vem depois, se reordenando continuamente, para traduzir em palavras e estruturação frasal esses modos de viver. Nesses processos todos, forças divergentes de debatem, entre conservar e transformar, entre manter e mudar.

É nesse contexto que, há algum tempo, começou-se a questionar, em primeiro lugar, o fato de a língua portuguesa (não só a portuguesa, mas essa é a minha língua materna, por isso penso a partir dela) fazer uso do masculino para incluir todos os gêneros, e a palavra homem como termo universal que inclui homens, mulheres, crianças, velhos e todos quantos mais. Tal regra persiste, mas tem sido contestada em quase todas as frentes, restando poucos usuários que insistem em sua manutenção. 

Junto aos questionamentos e à constatação da necessidade de se rever essa questão, começou-se a buscar formas alternativas de representação dessas demandas nos textos escritos. Assim, houve quem fizesse uso dos indicativos dos gêneros feminino e masculino para a escrita de substantivos, adjetivos, pronomes etc., em referências sempre a homens e mulheres, professores e professoras, pais e mães, meninos e meninas, entre outros. Apareceram também escritas com frases tais como: Ele/a é bonito/a. Um pouco além, houve quem utilizasse o sinal @ em lugar da indicação de gênero: El@ é bonit@. Estas estratégias representam projetos de inclusão, mas com algumas limitações. As duas primeiras são estritamente binárias do ponto de vista de gênero. O uso do sinal @, embora pareça mais aberta, é excludente em outras instâncias, especialmente no tocante às pessoas surdas e cegas, por apresentar obstáculos à tradução e à compreensão seja na língua de sinais, seja no braile. Além disso, o uso do @ resolve, parcialmente, a escrita, mas não resolve a fala. Do mesmo modo, o uso da barra é um problema para a língua falada.

Como desdobramento dessas tentativas, alguns segmentos sociais passaram a inserir uma terceira forma de articulação de gênero na escrita e fala, esta, referente às orientações não binárias. Ao lado de ela e ele, acrescentou-se a forma elo. A frase então passou a poder ter as seguintes construções: ela é bonita, em referência a uma pessoa de orientação feminina; ele é bonito, referindo uma pessoa de orientação masculina; elo é bonite, que inclui pessoas de orientação não binária. É importante ressaltar que a forma neutra não inclui todas as orientações, como seria o caso de @, mas refere-se à orientação não binária. Ou seja, ao cumprimentar a todes aqui presentes, não cumprimento todas as pessoas presentes, mas as pessoas de orientação não binária.

A adoção dessa terceira referência de gênero na língua não é consensual, e estabelece territórios de disputa entre as mais diferentes bandeiras.

Pessoalmente, tenho me proposto o exercício de forçar a ampliação dos recursos já disponíveis pela língua na direção do seu uso de modo neutro. Por exemplo, em lugar de escrever: Você, leitor, leitora, leitore deste texto sobre linguagem neutra, escolho escrever: Você que lê este texto sobre linguagem neutra. Assim, pretendo manter a interlocução com qualquer substância viva que, de alguma forma, e a seu modo, se aproxime do texto em pauta. Tal exercício não é simples, e tem apresentado desafios na estruturação do pensamento, a cada linha escrita, a cada argumento construído. Por outro lado, apesar do rigor no tocante à construção de uma perspectiva includente radical, no mais das vezes, em sua leitura, esse demarcador passa despercebido por quem faça a leitura. Ou seja, recorrentemente, quem o leia não se dá conta da indistinção não só de gênero, mas de qualquer outro marcador social, cultural, de gênero, biológico, enfim.

Nesses termos, entendo que, muitas vezes, o uso da terceira forma, na definição da orientação não binária, cumpre sobretudo a função de ressaltar, inevitavelmente, tal necessidade. Trata-se de uma bandeira erguida.

Por isso mesmo, sem abrir mão do exercício continuado de uso da língua de modo includente radical, quando solicitada, não me recuso a fazer o uso da linguagem neutra, especialmente naquelas situações que concorram à defesa de direitos legítimos, da ética, do respeito à pluralidade, por mais desafiador que isso seja.

Mas continuo exercitando as possibilidades da língua conforme posta, empurrando seus limites para mais além, traçando outros mapas, tentando redesenhar horizontes, para, dentro dela, fazer outros usos, disponível para as possibilidades de transformar os meus modos de pensar, de ser e de estar no mundo.

 

 

 

 

 


domingo, 15 de setembro de 2024

Mundo da arte

 Para Rafael

O jovem inquieto e metódico planeja e, passo a passo, vai executando seu caminho cujo destino é o mundo da arte. É artista respeitado. Seu trabalho é meticuloso, disciplinado, tem potência, pulsa em permanente ebulição. Ele faz, desfaz, refaz, com crivo e critérios até mesmo mais rigorosos do que os de curadores e comissões de julgamento.

Mas sua produção fílmica enfrenta resistências para ser aceita nos festivais regionais e nacionais. Ele se pergunta sobre as dissonâncias entre seu trabalho e as expectativas dos júris e dos organizadores dos eventos. Transforma essas questões em assunto de investigação. Sua indagação ganha força, sobretudo, quando tem a mesma produção aceita em festivais no exterior, alguns de grande porte e extensão internacional. Do mesmo modo, experimenta acolhida em salões de arte. Dos salões regionais aos nacionais, passa a experimentar a alegria de ver seus trabalhos aceitos, expostos, admirados por diferentes públicos e segmentos do mundo da arte. Passa, então, a ter reconhecimento, a ter o próprio estilo reconhecido, nominado. Colecionadores desejam adquirir exemplares de seu trabalho.

Naquela noite, seria aberta uma grande exposição, resultado de um edital público, que chegou à escolha de um seleto conjunto de obras completas para serem produzidas e mostradas com destaque, além de outros trabalhos. A proposta dele estava entre as obras a serem apresentadas completas. Assim, logo à vista de quem ingressasse no grande salão, estavam expostas suas fotografias inquietantes. Todos os curadores, membros do júri, jornalistas, estudantes de artes, digital influencers passaram por ali, conversaram com ele, fizeram perguntas, tiraram fotos. Não havia dúvidas de que ele se tornara referência notória no circuito artístico.

Em meio à intensa movimentação, depois de muitas fotos e comentários e cumprimentos, incluindo autoridades políticas locais, ele constatou que duas das suas fotos estavam de ponta-cabeça. Os montadores, igualmente encantados com seu trabalho, não se deram conta de que as duas fotos estavam viradas, com as posições invertidas, enquanto as fixavam, cuidadosamente. Ele ficou inquieto, não conseguiu mais se concentrar nas conversas, evitou fazer fotos diante do trabalho. Procurou pela pessoa responsável pela montagem, para pedir ajuda. Não encontrou. Voltou. Entre receios, tirou, ele mesmo, as fotografias da posição inicial, reposicionando-as, agora corretamente. Este lado para cima.

Respirou aliviado. Ninguém percebeu o movimento ágil de troca. Tampouco perceberam que havia sido feita a troca. Nem os admiradores, nem os críticos, nem os curadores... Nem o próprio responsável pela montagem da exposição percebeu a alteração. Para eles, pareceu não fazer lá muita diferença, mesmo...

Goiânia, 13 de julho de 2024

 

domingo, 25 de agosto de 2024

Sobre ser brasilense


A palavra brasileira, ou brasileiro, para definir quem nasce no Brasil, talvez seja a única forma em que a definição da nacionalidade faz uso de um sufixo que indica uma ocupação profissional: ferreiro, sapateiro, coveiro... Indica, também, um recipiente ou depósito: braseiro, bueiro, esterqueiro...

Dentre as palavras para definir outras nacionalidades, em língua portuguesa, encontram-se aquelas formadas com vários sufixos, dentre os quais -aio: uruguaio, paraguaio; -es: português, inglês, francês, escocês; -ano: italiano, norte-americano, indiano, peruano, mexicano, venezuelano, iraniano, sul-africano... Em relação ao Brasil, esse sufixo define campos de conhecimento a partir de centros de estudos em geral estrangeiros: encontram-se aquelas pessoas que se dedicam aos estudos brasilianos em literatura, política, cultura, cinema, etc. O sufixo -ense também figura para a definição de nacionalidade, é o caso de canadense. No Brasil, esse sufixo é usado para definir a naturalidade em relação tanto à unidade federativa ou ao município onde as pessoas tenham nascido: catarinense, paranaense, maranhense, goianiense, brasiliense. 

O sufixo -ense apresenta uma vantagem dentre os demais, por sua natureza inclusiva, ao abrigar femininos, masculinos e todas as demais variações possíveis dos seres nascidos naquele território: país, unidade federativa, distrito, município, vila...

Também no caso do Brasil, a língua portuguesa prevê outras duas palavras, desconhecidas da maior parte das pessoas, para definir nossa nacionalidade: brasiliano e brasilense. 

Isso posto, escolho me assumir brasilense, e não mais brasileira, nem brasiliana. Note-se a ausência da letra i em meio à palavra, o que a diferencia de brasiliense, em referência a alguém que tenha nascido em Brasília.

Cidadã brasilense, habitante do Brasil Central.




terça-feira, 11 de junho de 2024

O professor quer dar aula... mas o que ensina o professor?

 

foto: Jossier Boleão

Naquela terça-feira, pela manhã, o professor iniciou o dia determinado a dar sua aula. Logo cedo dirigiu-se ao prédio de sua faculdade, que não ficava muito longe, mas também não muito perto de sua casa. No dia anterior, tinha enviado mensagem eletrônica aos alunos de sua disciplina, confirmando as atividades do dia. Estava certo de que estariam esperando por ele (a propósito, era um professor movido por muitas certezas!).

Contudo o movimento grevista discente ainda estava em curso. Os estudantes da universidade vinham assumindo posições cada vez mais consistentes e coerentes em suas reivindicações e na crítica feita tanto à gestão institucional quanto ao orçamento destinado às universidades federais. Em suas reivindicações, apontavam desde a falta de papel higiênico nos sanitários, à falta de segurança nos campi, vários problemas em relação ao refeitório, a redução no financiamento de bolsas para permanência de estudantes de renda inferior, até a necessidade de discussão sobre os ajustes do calendário acadêmico considerando as circunstâncias atuais da comunidade universitária.

O movimento grevista estudantil foi reconhecendo sua própria força, ganhando fôlego e visibilidade. Os estudantes aprenderam e ensinaram em sua mobilização. Na manhã daquela terça-feira, o comando de greve do movimento estudantil teria reunião com a reitora, finalmente, para as negociações.

Ao mesmo tempo, a greve dos servidores das áreas administrativa e técnica também tinha continuidade, com poucos avanços na negociação em âmbito federal. Apesar disso, a reitoria escolhera dar prosseguimento às atividades na universidade como se não se ressentisse da ausência desses servidores. Em contrapartida, os estudantes, fortalecidos em suas relações de pertencimento, reforçavam tanto a importância da greve quanto a importância das funções institucionais por eles exercidas.

Mas o professor não abria mão de sua missão: dar aula. A greve dos docentes fora encerrada e ele estava determinado a dar prosseguimento aos conteúdos de sua disciplina. Chegando à faculdade, contudo, encontrou todas as salas fechadas, bloqueadas com cadeiras, painéis, armários e toda sorte de mobiliário. Os alunos o aguardavam, no corredor, temerosos de serem prejudicados com faltas ou avaliações caso não comparecessem. Cioso de seu exercício docente, ele os conclamou para ajudarem a liberar o acesso, desfazendo o bloqueio montado pelo comando de greve do movimento estudantil. Assim, retiraram as cadeiras, o armário, o painel. Ele abriu a sala e todos se acomodaram nas carteiras reorganizadas. O professor começou a aula abordando conteúdos imprescindíveis à formação daqueles estudantes, tinha certeza disso. Sentia-se forte, o professor, fortalecidas suas convicções. Os estudantes aprendiam com ele.

Aprendiam o quê? O que aprendiam, com ele, de modo que não esqueceriam, que passariam a compartilhar, como convicção? Aprendiam o conteúdo desenvolvido durante aquela aula? Provavelmente sim, mas com alguma chance de, pouco tempo depois, dele já terem se esquecido. Por outro lado, não se esqueceriam, porquanto teriam incorporado a aprendizagem, os ensinamentos sobre um posicionamento que minimiza, ou desconsidera, ou mesmo confronta o pertencimento a uma categoria em mobilização política, o pertencimento a um movimento de estudantes que questiona, que levanta sua voz para perguntar sobre as condições políticas e econômicas da educação e seus agentes, e sua comunidade como um todo.

Para aquele professor, a greve não passava de um ruído, uma perturbação momentânea, que logo passaria. Foi isso que seus estudantes aprenderam.