domingo, 29 de dezembro de 2024

Chegada do trem à estação, ou, mais de um século depois, os sustos provocados pela IA


 Multiplicam-se os relatos sobre a primeira sessão coletiva em Paris, quando os irmãos Lumière apresentaram os brevíssimos registros em filme do trem chegando à estação e de operários saindo da fábrica ao final do expediente. Sempre se destaca o susto das pessoas, especialmente ante a possibilidade de serem atropeladas pelo trem vindo em sua direção. Tal impressão repetiu-se em incontáveis sessões posteriores. E na medida em que os recursos técnicos e tecnológicos para a produção fílmica se ampliaram, as sessões no cinema ganharam potência nos filmes de ficção e não ficção, conduzindo seus públicos a sensações intensas, surpresas, sustos, vertigens.


A grande questão está na ideia, recorrente ainda hoje entre a maioria das pessoas, de que a imagem em movimento projetada no cinema tem potência de registro de verdade. O que é um equívoco, mesmo quando se tratem das assim nomeadas produções documentais. Estas, apesar de serem produzidas seguindo um protocolo diferenciado em relação às ficcionais, não são prova de verdade, mas discurso construído a partir de pontos de vista muito específicos sobre determinadas questões. Muitas vezes, os filmes documentais dizem menos de seus contextos do que filmes ficcionais, até os filmes fantásticos, de ação ou de ficção científica, que, embora não tenham pretensão de provar quaisquer verdades, acabam sendo testemunhos potentes das circunstâncias nas quais são concebidos e realizados.


Assim, tem-se em conta que vídeos e outras peças do audiovisual compartilhados à larga nas mídias mais diversas não têm, no ponto de partida, o pressuposto de prova de verdade. Nem o pressuposto, nem o compromisso. São discursos, defendem certos pontos de vista, e para tanto fazem uso dos elementos constituidores das imagens em movimento sonorizadas. Quase sempre, contudo, reivindicam a condição de verdade, como parte do esforço de convencimento de suas argumentações.


Nesses termos, os recursos propiciados pelas plataformas de inteligência artificial, disponibilizadas para usos os mais diversos, incluindo produção audiovisual, provocam surpresas e impressionam na mesma escala que a projeção dos filmes dos irmãos Lumière no final do século XIX. E a base dessa capacidade de impressionar está, sobretudo, assentada na constatação de que imagem em movimento como prova de verdade pode ser uma farsa produzida por estruturas cada vez mais complexas da tecnologia digital. Tais estruturas podem produzir os discursos que quiser, à disposição de usuários com os mais diversos propósitos, ou, até quem sabe, à disposição das próprias máquinas, reiterando o sobressalto, também antigo, de a humanidade ser suplantada, ou mesmo extinta por suas criações.


Parece, mesmo, que ainda estamos ali, naquele 28 de dezembro de 1895, sem sair do Salon Indien do Grand-Café de Paris desde então, sob os efeitos da projeção dos breves filmes realizados por Auguste e Louis Lumière, fazendo uso de sua invenção, o cinematógrafo.

 



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