quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Delícias da feira




As maiores delícias que encontro na feira não estão nos sabores, nos cheiros ou nas cores de frutas, legumes, folhagens, doces, temperos, e outros itens. Essas delícias estão nos falares, nos ritmos das palavras, no entoado das ideias, no tecido do pensamento. Vou caminhando, com os ouvidos atentos. Por vezes me aproximo de alguma banca, procurando coisas que dificilmente estariam à venda, para me deliciar com as respostas. Noutras vezes, me surpreendem com provocações divertidas, astúcias dos jogos de comprar e vender.

Na primeira banca, o rapaz vendia um pacote do milho já cortado por R$ 5,00. Achei caro. Ele me explicou que era o milho de 7 espigas. Resolvi verificar o preço numa banca mais à frente. Uma senhora miúda, sorridente, estabeleceu seu preço: R$ 4,00, com o milho de 6 espigas. Fiz as contas mentalmente. Nesta banca, a espiga saía ao valor de uma dízima periódica: R$ 0,6666666..., na outra, uma dízima periódica um décimo mais cara: R$ 0,7666666... Fiquei na última banca. Enquanto a senhora cortava o milho, fui reunindo as moedas. Pensei em voz alta: “Se eu não encontrar o dinheiro com que pagar, vou pegar o milho e sair correndo...” Ela riu-se, e me provocou: “Não precisa! Se não tiver dinheiro, não tem problema, é só vir me ajudar a cascar esses milho. Num instantinho, paga sua conta”. Depois me olhou, quase séria, e arrematou: “Só passa fome quem quer, não é?

Juntei as moedas, que somaram o total de que eu precisava. Ainda não era desta vez que eu iria cascar milho para pagar a conta. Aliás, um milho bem verdinho, tenro, quase doce. Virei freguesa.




quarta-feira, 29 de agosto de 2012

No eixo da morte (Afonso Brazza)





Agora vou partir, vou viver junto com os animais, eles não têm maldade no coração. (Dirige-se à mocinha). Vamos. Mas sempre tem a verdade. Nem Cristo escapou dos inimigos. Agora eu lhe pergunto: pra quê tanta violência? Pra quê matar, destruir a vida do próximo, sabendo que somos todos irmãos, na paz, na alegria e na tristeza. Meus Deus, eu não lhe peço perdão, porque isso eu não mereço, mas lhe peço: perdoe o resto do mundo. Deus escreve certo por linhas tortas... (Fala da personagem interpretada por Afonso Brazza, na sequência final do filme No eixo da morte, realizado em 1997).


domingo, 26 de agosto de 2012

Troca de plantão. ou: Partilha nos afazeres domésticos...

Quando e onde os cuidados com a prole são compartilhados sem que se façam necessários discursos de gênero ou quaisquer outros afins...

Um dos cônjuges (o macho ou a fêmea? importa saber?) já está aquecendo os ovos da futura ninhada há algum tempo...

O outro cônjuge (o macho, ou a fêmea? importa saber?) se aproxima, com passos rápidos. 
O plantonista se levanta.

Passam um pelo outro. Sabem um do outro.
  
Compartilham um projeto comum: uma ninhada de ovos, a prole em devir, que precisa de cuidados...

O novo plantonista encaminha-se para o seu posto, enquanto o outro vai recompor-se

Plantão assumido...

... enquanto o outro pode sacudir as penas, alimentar-se,
 espichar as pernas longas e finas, esbeltas, até seu próximo plantão.





quarta-feira, 22 de agosto de 2012

o vestido da cantora


Sentado, o rapaz a acompanhava ao violão, enquanto ela empunhava o microfone, girando no palco, dançante, entoando músicas com a voz aguda e afinada. O vestido vermelho escuro era feito de um tecido denso, pesado, que pendia abrindo-se em direção ao chão. Ela girava, e ele fazia uma roda ampla, brincando de sombras. Então ela girava no sentido oposto. O vestido se enleava em suas pernas, até desfazer a torção, e abrir-se na outra direção. Quando ela parava, da ponta de cada seio formava-se uma prega no tecido, que se derramava até em baixo. O seio tremelicava, ao ritmo da música, fazendo vibrar o tecido, querendo mostrar-se, mesmo coberto. Sem nenhum pudor.