sábado, 6 de outubro de 2012

Ouvindo Tom Waits



Minha amiga Nana postou o link de uma música de Tom Waits na minha página. Sugestão dada e aceita. Estou rememorando músicas desse artista que transita entre várias categorias: compositor, cantor, ator (quem não viu Down by law? recomendo), performer... Algumas dessas músicas fazem parte de memórias muito caras, mobilizam afetos que se traduzem em odores, sensações táteis, atmosferas.

Lembro-me a estranheza provocada em mim na primeira vez que ouvi sua música. Num aniversário, um amigo presenteou-me com uma fita k-7, daquelas que a gente gravava uma seleção muito personalizada, e arrematava inventando uma capa, fazendo uso de colagem ou desenhando com caneta hidrocor, lápis de cor, giz de cera... Esse amigo mudou-se em seguida para endereço distante, e perdi seu contato. Na fita, não deixou qualquer referência ao artista, nomes de música, qualquer pista que pudesse me ajudar na identificação.

Em casa, acionei o toca-fitas. Aquele som deu-me a impressão de estar errado. Mas esse estar errado era justamente seu modo de estar certo. Parecia alguma coisa que precisava estar fora do lugar para ocupar o lugar que lhe cabia. Tinha algo de animal, de instintivo. Era bruto, rústico, mas também transpirava desamparo. Talvez despertasse em mim uma dor imemorial, uma compaixão. Acho que me fazia lembrar o quão precários são os fios com que tecemos nossas vidas. Não tinha dúvidas quanto à delicadeza indecifrável daquela música que me lembrava terra, pedra, ferrugem, madeira, correnteza... Meu peito ficava apertado, não importava o teor da letra cantada. Era tomada pela mesma sensação, toda vez que ouvia a fita, perguntando-me que músico era aquele!?

Numa tarde qualquer, minha casa foi assaltada. Entre os objetos levados, estavam minhas fitas K-7. Incluindo aquela, inominada, com uma voz cujo dono ainda não tinha feições para mim. Passaram-se alguns anos, quando, na casa de outro amigo, ouvi o timbre inconfundível de uma musicalidade em turbilhão que provocava, em mim, aquela sensação inevitável. Tom Waits apresentava-se, enfim, como artista com nome, sobrenome, discografia, filmografia, gesto e olhar.

(...)
She was 15 years old
And she never seen the ocean
She climbed into a van
With the vagabond
And the last thing she said
Was "I love you mom".

And a little rain
Never hurt no one
And a little rain
Never hurt no one

(A little rain. Tom Waits)



sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Unicórnios


Unicórnios
Vilém Flusser
publicado no Jornal Folha de São Paulo de 24 de março de 1972

Embora não sejam, a rigor, animais domésticos, são, no entanto, extremamente úteis ao homem. A sua utilidade varia com o tempo. Na antigüidade o seu chifre servia, apropriadamente moído, como remédio contra todos os venenos. Na Idade Média o unicórnio servia como atributo da virgindade, portanto tinha utilidade pública incontestável. No romantismo e pós-romantismo foi amplamente utilizado como tema de poesias, (embora a palavra "unicórnio" não tenha muitas rimas nas línguas latinas). E atualmente é indispensável para livros de lógica e teoria do conhecimento. Com efeito: tais livros não poderiam existir, se o unicórnio não existisse, e nem, se existisse. Para prová-lo, tomemos as seguintes sentenças:

1. A maçã é verde.
2. O sangue é verde.
3. Deus é verde.
4. A liberdade é verde.
5. O presente rei da França é verde.
6. O unicórnio é verde.

A primeira sentença pode ou não ser verdadeira. A segunda é falsa. Ambas têm sentido. As demais sentenças não têm sentido. Pois isto é fácil dizer-se, é fácil verificar-se, já que, ao dizermos tais sentenças, estamos segurando a risada. Por não terem sentidos tais sentenças, são ridículas e divertidas. Difícil é dizer por que tais sentenças não têm sentido, porque os seus sujeitos, a saber: Deus, a liberdade, o presente rei da França e o unicórnio, não existem. Mas não podemos dizê-lo. Não se pode dizer que Deus não existe, porque seria primeiro necessário definir o termo "Deus". Coisa impossível. Não se pode dizer que a liberdade não existe, porque a sua presença ou ausência são nitidamente constatáveis. A sentença "a liberdade é verde" não tem sentido, embora a liberdade exista. Não se pode dizer que o presente rei da França não existe, sem dizer-se, também, quando se está falando. Por exemplo: no século 17 existia um rei da França que estava presente, e a sentença era então provavelmente falsa, e tinha portanto sentido. Mas, quanto ao unicórnio, todos estão de acordo que não existe. Portanto podemos dizer claramente porque a sentença "o unicórnio é verde" não tem sentido. O único caso nítido entre os exemplos fornecidos. Não fosse o unicórnio, e os livros de lógica e teoria de conhecimento não teriam sentido. Não teriam sentido, porque não poderiam exemplificar o que quer dizer: "não ter sentido". Isto seria uma pena, especialmente para professores de lógica e teoria do conhecimento. Mas, felizmente, há unicórnio, e Sócrates é seu fiel companheiro. Assim: Sócrates é mortal, e o unicórnio é verde. Viva a cultura.




temporalidades






quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Memória de um gole de cerveja



Certas impressões sensoriais deixaram marcas tão fundas nos sentidos, que muito tempo depois, por vezes, inesperadamente, sou tomada de assalto pela impressão deixada por alguma lufada de vento, uma sonoridade, o gole de alguma bebida, fixada nalgum momento perdido entre tantos que podem ser revisitados no amplo e concorrido labirinto da memória.

No final dos anos 70, eu era estudante secundarista. Minha turma, do Curso Técnico em Eletrônica, era formada majoritariamente por rapazes, numa proporção de, aproximadamente, seis meninos para cada menina. Naquele final de semana, eu participava de uma gincana, numa equipe que havíamos batizado de Samuca. Era uma referência carinhosa ao Samuel, membro da equipe, colega de classe, jogador de vôlei – chegou a integrar a seleção de Brasília durante algum tempo.

Durante todo o sábado, a equipe se desdobrou em várias, para cumprir todas as tarefas da melhor forma possível, e assim obter a pontuação máxima. Ao final do dia, estávamos exaustos, suados, em desalinho. Mas não muito, pois ainda encontramos energia para comemorar aos pulos a conquista do primeiro lugar. No início da noite, seguimos para uma pizzaria, onde mataríamos a sede e a fome, comentando os vários momentos do dia, as dificuldades e correrias pelas quais teríamos passado. E riríamos com a felicidade solta dos que conquistaram a vitória.

Acompanhando a maioria, pedi uma cerveja, enquanto esperávamos as duas pizzas gigantes que seriam servidas ao palitinho. Quando bebi o primeiro gole, senti seu frescor ligeiramente amargo e borbulhante. Fui sorvendo o líquido devagar, até a metade da taça. Aquela não foi minha primeira cerveja. Tampouco seria a última. No entanto, por certo não voltei a experimentar o mesmo prazer tomando dessa bebida, em qualquer outro momento depois dali.

Hoje, dia quente e seco de Primavera, busquei um pouco de água mineral gaseificada. Quando senti seu gosto, borbulhante e fresca, lembrei o gole daquela cerveja, há mais de três décadas atrás.

Um viva ao frescor! Ao frescor da idade, da cerveja, da água com gás!



segunda-feira, 1 de outubro de 2012

goianidades


Dentro do avião, comecei a sentir frio. Embora vestisse blusa com mangas, e um echarpe leve, que costuma me abrigar de brisas mais frescas, tinha a impressão de que a atmosfera gélida se enfiava pelos ossos adentro, causando mal estar. 

Estariam os demais também passando pelo mesmo desconforto? Ao meu lado, um rapaz em mangas de camisa esfregava as mãos para aquecê-las, e mais adiante uma moça observava a paisagem com os braços cruzados. Também sentiam frio.

Pouco antes de aterrizar, o piloto deu informações sobre o voo e sobre o clima. Nos aguardava uma cidade que, às 20h30min, marcava 28ºC. 

À porta do avião, senti a lufada do ar quente, que aqueceu a pele fria, num alívio. Logo atrás de mim, uma moça bonita abriu um sorriso: "- Podemos arregaçar as mangas do casaco: chegamos em casa! Chega de passar frio!" Ri-me com ela.

Tínhamos chegado em casa! Bem chegados ao tempo acalorado de Primavera. Em casa!