Bichos V
Gente
O que é que distingue o homem dos
demais animais radicalmente, tão radicalmente que merece estudos totalmente
separados da zoologia? Isto: todos os zoólogos pertencem, eles próprios, a
espécie humana. Já que o Homem é o tema mais apaixonante do homem, e já que os
zoólogos são homens, reservam ciências especiais e separadas da zoologia, para
o estudo do Homem. Por exemplo a antropologia. E aí passam a descobrir, obviamente,
que o Homem se distingue dos animais em muitos aspectos. Obviamente, porque se,
em vez de antropologia, fizessem arthropodologia, descobririam que os insetos
se distinguem dos animais em tantos aspectos, em quantos deles se distingue o
Homem.
Todas as espécies são
inteiramente distintas das demais sob certos aspectos. Não fosse assim, e não
teria sentido falar-se em espécies distintas. E todas as espécies, cada qual
por si, representa um ponto máximo na evolução da vida. Não fosse assim, e a
espécie estaria extinta. Representam, cada qual, um ponto máximo da evolução. Mas
cada qual o ponto máximo de um ramo da evolução que se dirige a metas
divergentes. Apenas neste sentido é o Homem animal mais evoluído. Todos os
animais existentes são, neste sentido, os mais evoluídos.
Será pois a nossa profunda
convicção quanto à posição especial do Homem no contexto da vida apenas
expressão do nosso chauvinismo humano? Não haverá realmente critério “objetivo”
a permitir a afirmativa que somos superiores às minhocas? Estamos realmente condenados
a dizer que “objetivamente” a minhoca nos supera por exemplo na capacidade de
regenerar partes do corpo perdidas? Possivelmente não haja. Possivelmente a
objetividade nos obriga a reconhecer que todos os animais são iguais, inclusive
o homem. Animal Farm de Orwell. Mas o que significa isto? Absolutamente nada.
A objetividade que se dane. Viva o
chauvinismo humano (o único chauvinismo que se justifica atualmente). Somos
humanos, e nada de humano nos é alheio. Cantemos o louvor do Homem, não embora
seja apenas animal igual aos outros, mas porque é apenas animal igual aos outros.
E não cantemos apenas o louvor dos ditos “grandes” homens. Isto seria fácil.
Sophocles e Mozart dispensam nossos louvores. Cantemos o louvor da gente. Isto é
o que é difícil. É difícil ver na massa uniforme, cinzenta e corriqueira dos
homens que nos cercam o fato de que cada qual desses homens é potencialmente o
nosso parceiro na luta contra o absurdo da vida e da morte animalesca. É difícil,
mas deve ser tentado. Não com, mas contra toda antropologia.
Vilém Flusser
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