sábado, 17 de janeiro de 2015

Bichos V - Gente (Vilém Flusser)

Bichos V
Gente
O que é que distingue o homem dos demais animais radicalmente, tão radicalmente que merece estudos totalmente separados da zoologia? Isto: todos os zoólogos pertencem, eles próprios, a espécie humana. Já que o Homem é o tema mais apaixonante do homem, e já que os zoólogos são homens, reservam ciências especiais e separadas da zoologia, para o estudo do Homem. Por exemplo a antropologia. E aí passam a descobrir, obviamente, que o Homem se distingue dos animais em muitos aspectos. Obviamente, porque se, em vez de antropologia, fizessem arthropodologia, descobririam que os insetos se distinguem dos animais em tantos aspectos, em quantos deles se distingue o Homem.
Todas as espécies são inteiramente distintas das demais sob certos aspectos. Não fosse assim, e não teria sentido falar-se em espécies distintas. E todas as espécies, cada qual por si, representa um ponto máximo na evolução da vida. Não fosse assim, e a espécie estaria extinta. Representam, cada qual, um ponto máximo da evolução. Mas cada qual o ponto máximo de um ramo da evolução que se dirige a metas divergentes. Apenas neste sentido é o Homem animal mais evoluído. Todos os animais existentes são, neste sentido, os mais evoluídos.
Será pois a nossa profunda convicção quanto à posição especial do Homem no contexto da vida apenas expressão do nosso chauvinismo humano? Não haverá realmente critério “objetivo” a permitir a afirmativa que somos superiores às minhocas? Estamos realmente condenados a dizer que “objetivamente” a minhoca nos supera por exemplo na capacidade de regenerar partes do corpo perdidas? Possivelmente não haja. Possivelmente a objetividade nos obriga a reconhecer que todos os animais são iguais, inclusive o homem. Animal Farm de Orwell. Mas o que significa isto? Absolutamente nada.
A objetividade que se dane. Viva o chauvinismo humano (o único chauvinismo que se justifica atualmente). Somos humanos, e nada de humano nos é alheio. Cantemos o louvor do Homem, não embora seja apenas animal igual aos outros, mas porque é apenas animal igual aos outros. E não cantemos apenas o louvor dos ditos “grandes” homens. Isto seria fácil. Sophocles e Mozart dispensam nossos louvores. Cantemos o louvor da gente. Isto é o que é difícil. É difícil ver na massa uniforme, cinzenta e corriqueira dos homens que nos cercam o fato de que cada qual desses homens é potencialmente o nosso parceiro na luta contra o absurdo da vida e da morte animalesca. É difícil, mas deve ser tentado. Não com, mas contra toda antropologia.

Vilém Flusser



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