O relato em questão tem duas portas de entrada. Tentarei conciliar
ambas nesta narrativa.
Porta 1 – primeira parte
Formou-se médico, fez a primeira residência em pediatria,
mas foi na psiquiatria que encontrou o campo de atuação mais apaixonante. Escolheu
dedicar sua atenção a pacientes dependentes químicos. Alcóolatras, viciados em
cocaína, e tantos outros, integravam a população de sofredores que se submetiam
aos seus cuidados. A experiência profissional lhe deu fôlego para também atuar
como docente, e passou a ensinar num curso de medicina, preparando estudantes para
trabalhar com aquelas questões.
Muito atuante, participava de programas de entrevistas,
publicava artigos, em que tratava dos desafios na sociedade contemporânea para se
abordar a questão das drogas.
Porta 2 – primeira parte
Fizemos nossa mudança para o apartamento amplo e antigo no
mês de junho. Levei algum tempo para me acostumar à proximidade com o prédio ao lado. Ouvíamos boa parte das conversas dos nossos
vizinhos. Havia uma mãe que brigava muito com as crianças. Um casal que, de
tempos em tempos, discutia com veemência. Aos poucos, naturalizamos essas
informações, que passaram a integrar a paisagem sonora, ao lado das conversas simpáticas das maritacas pela manhã e nos finais de tarde, das advertências dos
bem-te-vis aninhados nos transformadores de energia elétrica, e também do ruído continuado dos carros transitando na rua
concorrida.
Não estou muito certa sobre quando começamos a ouvir os
gemidos longos, persistentes, cortando o estreito espaço entre os dois prédios.
Eles criaram uma marca diferenciada na paisagem sonora, e nos comoveram. Em vários
momentos do dia, por vezes noite adentro, reverberavam dor e sofrimento. Oras mais
intensos, oras agitados, noutras mais leves, os gemidos começaram a nos
instigar: quem seria? Seria algum idoso submetido a maus tratos?
Porta 1 – segunda parte
Num dia quase corriqueiro de sua rotina, depois de ter atendido seus pacientes, passou ao bloco das aulas. Quando se preparou para iniciar as
explicações à classe cheia de alunos, deu-se conta de que havia esquecido o que tinha a dizer. Uma
lacuna abriu-se em sua memória, repentinamente. O vazio que se iniciava em sua
mente parecia ter alguma coisa de familiar, reconhecível. Ele próprio poderia diagnosticar. Por isso mesmo, tratou de solicitar os exames, verificar possibilidades, enfrentar o monstro que
despertava para aterrorizar seus dias e noites. O pior monstro, que não mais o deixaria.
Não se passou muito tempo entre o
diagnóstico e a deflagração da perda gradativa de movimentos e fala. Aposentado
por invalidez, a esposa não suportou o peso da missão que recaiu sobre si,
pediu a separação. Foi organizada uma estrutura de atendimento domiciliar, com
cuidadores revesando-se 24hs por dia.
Porta 2 – segunda parte
Quando saí com o carro pelo portão da garagem, deparei-me
com a mocinha empurrando a cadeira de rodas em direção à praça que dista uns
400m. Ele seguia, atento ao movimento da rua, com os braços caídos sobre as pernas,
interagindo com a mocinha, enquanto ela falava algumas coisas. Estremeci, reconhecendo o gemido que, naquele
momento, ganhou fisionomia e corpo.
A lição mais
importante do mestre
Íamos à feira. Apesar de estarmos ainda na primeira metade da manhã, o calor beirava, já, a escala do insuportável. Passando
ao lado do prédio da esquina, ouvi o gemido reconhecível mesmo a muita
distância. Estava sentado, numa cadeira, ao lado da mesma moça que eu vira conduzindo
sua cadeira de rodas. Foi ela que contou sua história, e relatou as condições
em que estava vivendo. Atualmente, caminha com muita dificuldade, tem poucos movimentos, não pode
falar, mas permanece lúcido. Estavam ali, esperando pela ex-esposa que, embora
tenha se separado, não deixou de apoiá-lo.
Foi assim que soubemos sobre sua formação
profissional, sobre sua atuação como professor, e do fato de que é muito
conhecido, e querido, na cidade. Muitos ex-alunos e ex-pacientes alegram-se ao encontrá-lo, e
assim também o alegram, apesar da dor que se abateu sobre ele.
Aprender sobre a dor, a impotência, a frustração: esta, a
lição mais importante sendo propiciada pelo mestre. No entanto, parece que poucos são os aprendizes
dispostos a comparecer a essas aulas...
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