sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

A lição mais importante do mestre


O relato em questão tem duas portas de entrada. Tentarei conciliar ambas nesta narrativa.


Porta 1 – primeira parte
Formou-se médico, fez a primeira residência em pediatria, mas foi na psiquiatria que encontrou o campo de atuação mais apaixonante. Escolheu dedicar sua atenção a pacientes dependentes químicos. Alcóolatras, viciados em cocaína, e tantos outros, integravam a população de sofredores que se submetiam aos seus cuidados. A experiência profissional lhe deu fôlego para também atuar como docente, e passou a ensinar num curso de medicina, preparando estudantes para trabalhar com aquelas questões.

Muito atuante, participava de programas de entrevistas, publicava artigos, em que tratava dos desafios na sociedade contemporânea para se abordar a questão das drogas.


Porta 2 – primeira parte
Fizemos nossa mudança para o apartamento amplo e antigo no mês de junho. Levei algum tempo para me acostumar à proximidade com o prédio ao lado. Ouvíamos boa parte das conversas dos nossos vizinhos. Havia uma mãe que brigava muito com as crianças. Um casal que, de tempos em tempos, discutia com veemência. Aos poucos, naturalizamos essas informações, que passaram a integrar a paisagem sonora, ao lado das conversas simpáticas das maritacas pela manhã e nos finais de tarde, das advertências dos bem-te-vis aninhados nos transformadores de energia elétrica, e também do ruído continuado dos carros transitando na rua concorrida.

Não estou muito certa sobre quando começamos a ouvir os gemidos longos, persistentes, cortando o estreito espaço entre os dois prédios. Eles criaram uma marca diferenciada na paisagem sonora, e nos comoveram. Em vários momentos do dia, por vezes noite adentro, reverberavam dor e sofrimento. Oras mais intensos, oras agitados, noutras mais leves, os gemidos começaram a nos instigar: quem seria? Seria algum idoso submetido a maus tratos?


Porta 1 – segunda parte
Num dia quase corriqueiro de sua rotina, depois de ter atendido seus pacientes, passou ao bloco das aulas. Quando se preparou para iniciar as explicações à classe cheia de alunos, deu-se conta de que havia esquecido o que tinha a dizer. Uma lacuna abriu-se em sua memória, repentinamente. O vazio que se iniciava em sua mente parecia ter alguma coisa de familiar, reconhecível. Ele próprio poderia diagnosticar. Por isso mesmo, tratou de solicitar os exames, verificar possibilidades, enfrentar o monstro que despertava para aterrorizar seus dias e noites. O pior monstro, que não mais o deixaria.

Não se passou muito tempo entre o diagnóstico e a deflagração da perda gradativa de movimentos e fala. Aposentado por invalidez, a esposa não suportou o peso da missão que recaiu sobre si, pediu a separação. Foi organizada uma estrutura de atendimento domiciliar, com cuidadores revesando-se 24hs por dia.


Porta 2 – segunda parte
Quando saí com o carro pelo portão da garagem, deparei-me com a mocinha empurrando a cadeira de rodas em direção à praça que dista uns 400m. Ele seguia, atento ao movimento da rua, com os braços caídos sobre as pernas, interagindo com a mocinha, enquanto ela falava algumas coisas. Estremeci, reconhecendo o gemido que, naquele momento, ganhou fisionomia e corpo.


A lição mais importante do mestre
Íamos à feira. Apesar de estarmos ainda na primeira metade da manhã, o calor beirava, já, a escala do insuportável. Passando ao lado do prédio da esquina, ouvi o gemido reconhecível mesmo a muita distância. Estava sentado, numa cadeira, ao lado da mesma moça que eu vira conduzindo sua cadeira de rodas. Foi ela que contou sua história, e relatou as condições em que estava vivendo. Atualmente, caminha com muita dificuldade, tem poucos movimentos, não pode falar, mas permanece lúcido. Estavam ali, esperando pela ex-esposa que, embora tenha se separado, não deixou de apoiá-lo.

Foi assim que soubemos sobre sua formação profissional, sobre sua atuação como professor, e do fato de que é muito conhecido, e querido, na cidade. Muitos ex-alunos e ex-pacientes alegram-se ao encontrá-lo, e assim também o alegram, apesar da dor que se abateu sobre ele.

Aprender sobre a dor, a impotência, a frustração: esta, a lição mais importante sendo propiciada pelo mestre. No entanto, parece que poucos são os aprendizes dispostos a comparecer a essas aulas...








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