Fernando Pessoa, in “Ideias Políticas”
Nisto de manifestações populares, o mais difícil é
interpretá-las. Em geral, quem a elas assiste ou sabe delas ingenuamente as
interpreta pelos factos como se deram. Ora, nada se pode interpretar pelos factos
como se deram. Nada é como se dá. Temos que alterar os factos, tais como se
deram, para poder perceber o que realmente se deu. É costume dizer-se que
contra factos não há argumentos. Ora só contra factos é que há argumentos. Os
argumentos são, quase sempre, mais verdadeiros do que os factos. A lógica é o
nosso critério de verdade, e é nos argumentos, e não nos factos, que pode haver
lógica.
Nisto de manifestações — ia eu dizendo — o difícil é
interpretá-las. Porque, por exemplo, uma manifestação conservadora é sempre
feita por mais gente do que toma parte nela. Com as manifestações liberais
sucede o contrário. A razão é simples. O temperamento conservador é
naturalmente avesso a manifestar-se, a associar-se com grande facilidade; por
isso, a uma manifestação conservadora vai só um reduzido número da gente que
poderia, ou mesmo quereria, ir. O feitio psíquico dos liberais é, ao contrário,
expansivo e associador; as manifestações dos "avançados" englobam,
por isso, os próprios indiferentes de saúde, a quem toda a vitalidade acena.
Isto, porém, é o menos. O melhor é que, para quem pensa, o
único sentido duma manifestação importante é demonstrar que a corrente da
opinião contrária é muito forte. Ninguém arranja manifestações em favor de
princípios indiscutíveis. Tão pouco se aglomeram vivas em torno a um homem a
quem é feita uma oposição sem relevo ou importância. Não há manifestações a
favor de alguém; todas elas são contra os que estão contra esse alguém. É por
isso este, não o "homenageado", quem fica posto em relevo. Quanto
maior a manifestação, mais fraco está o visado; maior se sente a força que se
lhe opõe. Toda a manifestação é um corro-a-salvar-te de quem não pensa
contribuir para a salvação senão com palmas e vivas.
É este o ensinamento que toda a criatura lúcida tira das
manifestações populares.
Quando a uma criatura, que está em evidência ou regência, se
faz uma manifestação que resulta pequeníssima, conte tal criatura com o apoio
dum país inteiro. Se a manifestação fosse grande, tremesse então. É que os seus
partidários teriam sentido, por uma intuição irritada, a grandeza da oposição a
ele, e isso os chamaria em peso para a rua, para, com suas muitas palmas e
vivas, aumentar a ele e a si próprio a ilusão duma confiança que enfraquece.
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