domingo, 2 de setembro de 2012

A greve dos professores e as políticas de expansão da universidade pública



O Reuni é o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, e foi instituído por Decreto em abril de 2007, durante a gestão do então Presidente Luis Inácio Lula da Silva. Das 54 universidades federais existentes à época, 53 aderiram ao Programa em duas etapas iniciais. A Universidade Federal de Goiás integrou o primeiro grupo de universidades que aderiu ao Programa, de modo que já no primeiro semestre de 2008 iniciou-se a implementação de ações, que previam a construção de prédios, a aquisição de equipamentos e laboratórios diversos, a ampliação no número de vagas para professores, entre outros. Em contrapartida, deveria ser assegurada a ampliação de vagas a serem ofertadas nos vestibulares, bem como a abertura de novas turmas e cursos, ocupando áreas e horários subutilizados nas estruturas que já estavam em funcionamento. A criação de novas universidades federais integrou o conjunto de ações previstas pelo Governo Federal.

Vale lembrar, também, que, entre os anos de 2005 e 2008, foi criado e consolidado o Sistema UAB, Universidade Aberta do Brasil, pelo MEC, para a realização de cursos em plataformas online, na modalidade a distância. O Sistema, articulado à política do Reuni, visou à expansão na oferta dos cursos de graduação, à sua interiorização, na multiplicação de polos de formação, sobretudo, em regiões sem cobertura por universidades públicas, sejam estaduais ou federais.

Nesse mesmo período, ganhou corpo a discussão sobre a reserva de cotas na oferta de vagas, nos exames de vestibular, nas universidades públicas. Inicialmente visando assegurar vagas a serem pleiteadas por candidatos afrodescendentes, a discussão incluiu as comunidades de origem indígena, e posteriormente foi ampliada para a inclusão de estudantes com formação básica em escolas públicas.

A proposta de reestruturação e expansão das universidades federais, em alguma medida, visou responder à constatação recorrente de uma inversão, por parte das universidades públicas, no papel de formação de profissionais, particularmente no tocante aos segmentos sociais aos quais elas atendem, majoritariamente. Visou, também, responder às diversas pressões sociais que reivindicavam não só justiça social no acesso às universidades públicas, bem como cobravam a responsabilidade, por parte dessas instituições, no tocante à formação de profissionais que atendessem os segmentos sociais mais carentes, ou mais distantes dos grandes centros, no tocante à saúde, educação, e outras frentes.

Desde a década de 60 do século passado, pesquisadores da área de Educação, Ciências Sociais, Políticas, entre outras áreas, têm apontado, no cenário da sociedade capitalista, o papel da educação como reprodutora das desigualdades sociais. Numa breve revisão, podem ser lembrados alguns clássicos, tais como o livro A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, que resultou de ampla pesquisa realizada com estudantes do ensino superior, na França, assinado pelos pesquisadores Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, ou o livro A escola capitalista na França, assinado por Christian Baudelot e Roger Establet. Muitos outros autores, de orientação marxista, neo-marxista, quantos deles articulados com as teorias críticas na Educação, e as pedagogias mais progressistas, dedicaram-se a tentar compreender como os sistemas educacionais atuam no sentido de promover educação de qualidade para as elites, oferecendo uma educação de segunda categoria para as demais classes trabalhadoras, de modo que, de um lado, cumpram satisfatoriamente seus papéis nas searas sociais que lhe cabem, por onde possam transitar, e, de outro lado, sejam minimizadas, quando não neutralizadas, as possibilidades efetivas de mobilidade (ascensão) social.

No Brasil não são recentes as constatações que dão conta de uma inversão observada nos fluxos da formação escolar, na passagem da Educação Básica para o Ensino Superior. Estudantes oriundos das redes públicas de ensino, quando não interrompem sua formação (o que acontece, ainda, com a maioria dos jovens) antes de ingressarem num curso de graduação, acabam matriculando-se numa das miríades de instituições de ensino superior da iniciativa privada. São faculdades de pequeno, médio e grande porte, universidades diversas, muitas promovendo ensino de qualidade mínima duvidosa, e de cujos professores, em sua maioria, é cobrado que ministrem aulas – pelo que recebem salários relativos às horas-aula ministradas – sem qualquer ênfase no desenvolvimento de pesquisa ou projetos de extensão. São os chamados professores auleiros.

O acesso às universidades públicas, sobretudo às federais, dada a alta concorrência, particularmente no caso dos cursos mais valorizados (Medicina, engenharias, áreas tecnológicas...), acaba mostrando-se viável aos que realizaram os estudos da Educação Básica na iniciativa privada, onde não só experimentam um ensino de melhor qualidade, como também são preparados para situações que exigem espírito competitivo.

Assim, o Programa Reuni, articulado ao Sistema UAB, em alguma medida, representou uma iniciativa do Governo Federal para, ao menos em tese, enfrentar essa inversão. Muitas universidades transformaram-se em verdadeiros canteiros de obras. Outras, novas, brotaram desses canteiros. E houve a abertura de um grande número de concursos, para todas as áreas, com o ingresso de novos professores para a carreira docente como não se via desde o final dos anos 80, início dos anos 90. Essa referência, por certo, apoia-se numa memória mais subjetiva, carecendo de dados objetivos a lhe dar calço. Provavelmente requeira correção. Mas, tomada como metáfora a reforçar uma constatação, serve para enfatizar o fato de que, há muito, não havia tantas oportunidades de acesso à carreira docente nas universidades federais, como ocorreu a partir de 2008.

Como resultado, o quadro de professores efetivos mudou de feições, renovado de modo significativo. O número de professores em estágio probatório multiplicou-se, avolumando os processos de acompanhamento e avaliação. Novas demandas foram criadas nos diversos conselhos que organizam as universidades. Novos ventos sopravam, ao mesmo tempo em que alguns problemas também começavam a ganhar visibilidade.

Também se sabe, e não é de hoje, quase sempre os salários recebidos pelos professores nas universidades públicas federais mostram-se menos sedutores do que os oferecidos por algumas grandes universidades da iniciativa privada – nestas, em alguns casos, a remuneração chega a ser o dobro em relação àquelas. Muitos professores das universidades públicas, tão logo se aposentam, ocupam vagas nessas universidades, para enfim degustarem a possibilidade de remuneração competitiva no mercado. Por outro lado, também é sabido que o espaço para a pesquisa, com garantias à diversidade de abordagens, temáticas, sem maiores submissões aos ditames do mercado, só pode ser encontrado no ambiente da universidade pública. Essa possibilidade preserva, na universidade pública, o poder atrativo para o qual são endereçados projetos de atuação profissional por parte de jovens pesquisadores, a despeito dos salários pouco competitivos num mercado cada vez mais agressivo, a despeito das dificuldades internas relativas a gestões administrativas, a financiamentos de projetos e programas, ao déficit de apoios logísticos, entre outros itens que podem ser relacionados.

Assim, desde 2008, novos professores passaram a transitar pelos territórios das universidades federais, compartilhando espaços de aprendizagens com um número expandido de novos estudantes, muitos destes tendo assegurado suas vagas por meio do sistema de cotas implantado em algumas instituições, cada qual dentro de normativas estabelecidas internamente. Estudantes matriculados nos cursos na modalidade a distância ampliaram os raios de alcance da ação desses professores, multiplicados pela atuação de tutores com provisórios vínculos de trabalho e formação nem sempre suficiente, talvez nem sempre satisfatória, para as demandas de suas funções. E também remunerados em caráter de exceção (o que resulta na fragilidade nas estruturas de oferta desses cursos).

Muitos dos professores ingressantes depararam-se com universidades recém inauguradas, em condições muito precárias de trabalho, estruturas físicas ainda não concluídas. Outros se deram conta de que as perspectivas anunciadas pela carreira docente, a médio e longo prazo, haviam se redesenhado, em relação aos cenários de duas décadas atrás, soprando, dos horizontes abertos, algumas brisas de frustração.

Ora, é preciso ter-se em conta algumas referências das regras de funcionamento do mercado, que não deixariam de se fazer valer, mesmo que sob a vigência de políticas públicas e decretos de lei que, supostamente, pretendam minimizar seus efeitos nos programas de escolarização e formação profissional da população. No cenário da educação brasileira, o processo de universalização da educação básica implicou, também, na perda da qualidade do ensino promovido nas escolas públicas – esta afirmação tem em conta o recorte da educação no decurso do século XX, e não apenas as últimas décadas. A pressão, se não pela universalização, ao menos pela expansão chegou ao ensino superior, nas universidades públicas. Multiplicam-se os discursos que argumentam a necessidade de se assegurar o acesso das camadas mais pobres da população ao ensino de qualidade ali promovido.

Pois bem, que se assegure esse acesso, dirá o mercado. No entanto, dentre as possibilidades, que já se fazem sentir, de desdobramentos da expansão universitária, está a perda da qualidade do ensino ali promovido. Esse é o preço, sussurrará o mercado, entre risos de canto de boca. Ora, quando a elite permite aos pobres que tomem parte da festa, é porque seus membros já se retiraram do salão, levando consigo o melhor do banquete. Ocupam-se, já, de outros jogos e prazeres.

Os filhos das elites, que cumpriram a Educação Básica em escolas da iniciativa privada, começam a dispensar as vagas não reservadas às cotas – agora, por força de lei federal, 50% de todas as vagas oferecidas nos vestibulares, pelas universidades públicas, são reservadas para estudantes oriundos das redes públicas de ensino. Os filhos das elites não precisam delas. Podem bancar os altos custos de universidades da iniciativa privada que, ao longo dos últimos anos, se prepararam para recebê-los, estruturando seus laboratórios, remunerando muito bem seus doutores, fazendo uso, inclusive, de subsídios de dinheiro público para isso. Os salários e planos de carreira nas universidades públicas federais, a seguir essas tendências, em pouco tempo deixarão de ser interessantes para quem alce vôos minimamente ambiciosos do ponto de vista profissional.

É nessa atmosfera, mas nem sempre tendo muita clareza dos jogos de força no embate, que professores, uma parcela significativa dos quais com  não mais de 5 anos de carreira docente, iniciaram uma mobilização que chegou a envolver 57 das 59 universidades federais existentes, deflagrando uma greve de abrangência e força como ainda não se tinha experimentado na era pós-ditadura. Esses professores, em geral, concluíram seus cursos de graduação nos anos 90, e os cursos de pós-graduação já na primeira década deste milênio. Não têm relação com memórias dos embates mais dolorosos com a ditadura. Seus projetos vinculam-se à satisfação na atuação profissional, o que pode ser traduzido em boas condições de trabalho, salários satisfatórios, projeções razoáveis de progressão na carreira.

A greve de professores das universidades públicas federais, iniciada em maio de 2012, a se estender por setembro adentro, por certo, é um dos primeiros efeitos de grande repercussão do Programa Reuni, e outras extensões relativas à expansão do ensino universitário, público e gratuito, na esfera federal.

Os embates estão apenas se iniciando. Asseguremos bons lugares para observar os movimentos na arena. Ou tomemos parte dela. Sem perder de vista a necessidade de algum distanciamento para tentarmos compreender as relações de força em jogo, e para não nos deixarmos transformar em peões a serviço não se sabe ao certo de quem. Alguma vez, porventura, teremos alguma clareza?



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