O Reuni é o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação
e Expansão das Universidades Federais, e foi instituído por Decreto em abril de
2007, durante a gestão do então Presidente Luis Inácio Lula da Silva. Das 54
universidades federais existentes à época, 53 aderiram ao Programa em duas
etapas iniciais. A Universidade Federal de Goiás integrou o primeiro grupo de
universidades que aderiu ao Programa, de modo que já no primeiro semestre de
2008 iniciou-se a implementação de ações, que previam a construção de prédios,
a aquisição de equipamentos e laboratórios diversos, a ampliação no número de
vagas para professores, entre outros. Em contrapartida, deveria ser assegurada
a ampliação de vagas a serem ofertadas nos vestibulares, bem como a abertura de
novas turmas e cursos, ocupando áreas e horários subutilizados nas estruturas
que já estavam em funcionamento. A criação de novas universidades federais
integrou o conjunto de ações previstas pelo Governo Federal.
Vale lembrar, também, que, entre os anos de 2005 e 2008,
foi criado e consolidado o Sistema UAB, Universidade Aberta do Brasil, pelo
MEC, para a realização de cursos em plataformas online, na modalidade a distância. O Sistema, articulado à política
do Reuni, visou à expansão na oferta dos cursos de graduação, à sua
interiorização, na multiplicação de polos de formação, sobretudo, em regiões
sem cobertura por universidades públicas, sejam estaduais ou federais.
Nesse mesmo período, ganhou corpo a discussão sobre a
reserva de cotas na oferta de vagas, nos exames de vestibular, nas
universidades públicas. Inicialmente visando assegurar vagas a serem pleiteadas
por candidatos afrodescendentes, a discussão incluiu as comunidades de origem
indígena, e posteriormente foi ampliada para a inclusão de estudantes com
formação básica em escolas públicas.
A proposta de reestruturação e expansão das universidades
federais, em alguma medida, visou responder à constatação recorrente de uma
inversão, por parte das universidades públicas, no papel de formação de
profissionais, particularmente no tocante aos segmentos sociais aos quais elas
atendem, majoritariamente. Visou, também, responder às diversas pressões
sociais que reivindicavam não só justiça social no acesso às universidades
públicas, bem como cobravam a responsabilidade, por parte dessas instituições,
no tocante à formação de profissionais que atendessem os segmentos sociais mais
carentes, ou mais distantes dos grandes centros, no tocante à saúde, educação,
e outras frentes.
Desde a década de 60 do século passado, pesquisadores da
área de Educação, Ciências Sociais, Políticas, entre outras áreas, têm
apontado, no cenário da sociedade capitalista, o papel da educação como
reprodutora das desigualdades sociais. Numa breve revisão, podem ser lembrados
alguns clássicos, tais como o livro A
reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, que resultou de
ampla pesquisa realizada com estudantes do ensino superior, na França, assinado
pelos pesquisadores Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, ou o livro A escola capitalista na França, assinado
por Christian Baudelot e Roger Establet. Muitos outros autores, de orientação
marxista, neo-marxista, quantos deles articulados com as teorias críticas na
Educação, e as pedagogias mais progressistas, dedicaram-se a tentar compreender
como os sistemas educacionais atuam no sentido de promover educação de
qualidade para as elites, oferecendo uma educação de segunda categoria para as
demais classes trabalhadoras, de modo que, de um lado, cumpram satisfatoriamente
seus papéis nas searas sociais que lhe cabem, por onde possam transitar, e, de
outro lado, sejam minimizadas, quando não neutralizadas, as possibilidades efetivas
de mobilidade (ascensão) social.
No Brasil não são recentes as constatações que dão conta de
uma inversão observada nos fluxos da formação escolar, na passagem da Educação
Básica para o Ensino Superior. Estudantes oriundos das redes públicas de ensino,
quando não interrompem sua formação (o que acontece, ainda, com a maioria dos
jovens) antes de ingressarem num curso de graduação, acabam matriculando-se
numa das miríades de instituições de ensino superior da iniciativa privada. São
faculdades de pequeno, médio e grande porte, universidades diversas, muitas promovendo
ensino de qualidade mínima duvidosa, e de cujos professores, em sua maioria, é
cobrado que ministrem aulas – pelo que recebem salários relativos às horas-aula
ministradas – sem qualquer ênfase no desenvolvimento de pesquisa ou projetos de
extensão. São os chamados professores
auleiros.
O acesso às universidades públicas, sobretudo às
federais, dada a alta concorrência, particularmente no caso dos cursos mais
valorizados (Medicina, engenharias, áreas tecnológicas...), acaba mostrando-se
viável aos que realizaram os estudos da Educação Básica na iniciativa privada,
onde não só experimentam um ensino de melhor qualidade, como também são
preparados para situações que exigem espírito competitivo.
Assim, o Programa Reuni, articulado ao Sistema UAB, em
alguma medida, representou uma iniciativa do Governo Federal para, ao menos em tese, enfrentar essa inversão. Muitas universidades transformaram-se em
verdadeiros canteiros de obras. Outras, novas, brotaram desses canteiros. E
houve a abertura de um grande número de concursos, para todas as áreas, com o
ingresso de novos professores para a carreira docente como não se via desde o
final dos anos 80, início dos anos 90. Essa referência, por certo, apoia-se
numa memória mais subjetiva, carecendo de dados objetivos a lhe dar calço.
Provavelmente requeira correção. Mas, tomada como metáfora a reforçar uma
constatação, serve para enfatizar o fato de que, há muito, não havia tantas
oportunidades de acesso à carreira docente nas universidades federais, como ocorreu
a partir de 2008.
Como resultado, o quadro de professores efetivos mudou de
feições, renovado de modo significativo. O número de professores em estágio
probatório multiplicou-se, avolumando os processos de acompanhamento e
avaliação. Novas demandas foram criadas nos diversos conselhos que organizam as
universidades. Novos ventos sopravam, ao mesmo tempo em que alguns problemas
também começavam a ganhar visibilidade.
Também se sabe, e não é de hoje, quase sempre os
salários recebidos pelos professores nas universidades públicas federais
mostram-se menos sedutores do que os oferecidos por algumas grandes universidades da
iniciativa privada – nestas, em alguns casos, a remuneração chega a ser o dobro
em relação àquelas. Muitos professores das universidades públicas, tão logo se
aposentam, ocupam vagas nessas universidades, para enfim degustarem a
possibilidade de remuneração competitiva no mercado. Por outro lado, também é
sabido que o espaço para a pesquisa, com garantias à diversidade de abordagens,
temáticas, sem maiores submissões aos ditames do mercado, só pode ser
encontrado no ambiente da universidade pública. Essa possibilidade preserva,
na universidade pública, o poder atrativo para o qual são endereçados projetos de atuação profissional
por parte de jovens pesquisadores, a despeito dos salários pouco competitivos
num mercado cada vez mais agressivo, a despeito das dificuldades internas relativas a gestões administrativas, a financiamentos de projetos e programas, ao déficit de apoios logísticos, entre outros itens
que podem ser relacionados.
Assim, desde 2008, novos professores passaram a transitar
pelos territórios das universidades federais, compartilhando espaços de aprendizagens
com um número expandido de novos estudantes, muitos destes tendo assegurado
suas vagas por meio do sistema de cotas implantado em algumas instituições,
cada qual dentro de normativas estabelecidas internamente. Estudantes matriculados
nos cursos na modalidade a distância ampliaram os raios de alcance da ação desses
professores, multiplicados pela atuação de tutores com provisórios vínculos de
trabalho e formação nem sempre suficiente, talvez nem sempre satisfatória, para
as demandas de suas funções. E também remunerados em caráter de exceção (o que resulta na fragilidade nas estruturas de oferta desses cursos).
Muitos dos professores ingressantes depararam-se com
universidades recém inauguradas, em condições muito precárias de trabalho,
estruturas físicas ainda não concluídas. Outros se deram conta de que as perspectivas
anunciadas pela carreira docente, a médio e longo prazo, haviam se redesenhado,
em relação aos cenários de duas décadas atrás, soprando, dos horizontes
abertos, algumas brisas de frustração.
Ora, é preciso ter-se em conta algumas referências das
regras de funcionamento do mercado, que não deixariam de se fazer valer, mesmo
que sob a vigência de políticas públicas e decretos de lei que, supostamente, pretendam minimizar
seus efeitos nos programas de escolarização e formação profissional da população.
No cenário da educação brasileira, o processo de universalização da educação básica
implicou, também, na perda da qualidade do ensino promovido nas escolas
públicas – esta afirmação tem em conta o recorte da educação no decurso do século
XX, e não apenas as últimas décadas. A pressão, se não pela universalização, ao
menos pela expansão chegou ao ensino superior, nas universidades públicas. Multiplicam-se
os discursos que argumentam a necessidade de se assegurar o acesso das camadas
mais pobres da população ao ensino de qualidade ali promovido.
Pois bem, que se assegure esse acesso, dirá o mercado. No entanto, dentre
as possibilidades, que já se fazem sentir, de desdobramentos da expansão universitária,
está a perda da qualidade do ensino ali promovido. Esse é o preço, sussurrará o mercado, entre risos de canto de boca. Ora, quando a elite permite aos
pobres que tomem parte da festa, é porque seus membros já se retiraram do salão, levando
consigo o melhor do banquete. Ocupam-se, já, de outros jogos e prazeres.
Os filhos das elites, que cumpriram a Educação Básica em escolas da
iniciativa privada, começam a dispensar as vagas não reservadas às
cotas – agora, por força de lei federal, 50% de todas as vagas oferecidas nos
vestibulares, pelas universidades públicas, são reservadas para estudantes oriundos das redes públicas de ensino. Os filhos das elites não precisam delas. Podem bancar os
altos custos de universidades da iniciativa privada que, ao longo dos últimos
anos, se prepararam para recebê-los, estruturando seus laboratórios,
remunerando muito bem seus doutores, fazendo uso, inclusive, de subsídios de dinheiro
público para isso. Os salários e planos de carreira nas universidades públicas federais, a seguir essas tendências, em pouco tempo deixarão de ser interessantes para quem alce vôos minimamente ambiciosos do ponto de vista profissional.
É nessa atmosfera, mas nem sempre tendo muita clareza dos
jogos de força no embate, que professores, uma parcela significativa dos quais com não mais de 5 anos de carreira
docente, iniciaram uma mobilização que chegou a envolver 57 das 59 universidades
federais existentes, deflagrando uma greve de abrangência e força como ainda
não se tinha experimentado na era pós-ditadura. Esses professores, em geral,
concluíram seus cursos de graduação nos anos 90, e os cursos de pós-graduação
já na primeira década deste milênio. Não têm relação com memórias dos embates
mais dolorosos com a ditadura. Seus projetos vinculam-se à satisfação na atuação
profissional, o que pode ser traduzido em boas condições de trabalho, salários
satisfatórios, projeções razoáveis de progressão na carreira.
A greve de professores das universidades públicas
federais, iniciada em maio de 2012, a se estender por setembro adentro, por
certo, é um dos primeiros efeitos de grande repercussão do Programa Reuni, e
outras extensões relativas à expansão do ensino universitário, público e
gratuito, na esfera federal.
Os embates estão apenas se iniciando. Asseguremos bons
lugares para observar os movimentos na arena. Ou tomemos parte dela. Sem perder
de vista a necessidade de algum distanciamento para tentarmos compreender as relações
de força em jogo, e para não nos deixarmos transformar em peões a serviço não se
sabe ao certo de quem. Alguma vez, porventura, teremos alguma clareza?
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