quarta-feira, 1 de março de 2017

Entre o 5º DÓ e o produtivismo nas universidades


Corriam os primeiros anos da década de 1990, quando eu comecei a fazer aulas de canto com o Prof. Luiz. Ele fora professor na Universidade de Brasília. Mas, por incompatibilidade com uma série de elementos da cultura universitária, exonerou-se e montou sua própria escola, numa pequena e aconchegante sala instalada num centro comercial. Ali, recebia seus alunos, muitos dos quais também alunos de música na UnB.

Já não me recordo como eu cheguei até ele. Eu já fizera aulas de canto em outros lugares. O encontro com ele foi particularmente feliz, e me propiciou aprendizagens que vão muito além do domínio vocal para o canto, coisa que aliás ando precisando voltar a praticar.

No meu primeiro dia de aula, ele me perguntou, com a simplicidade que lhe era peculiar: por que você quer cantar? Eu lhe expliquei, prontamente, que fazia teatro, e muitas vezes cantava em cena, além disso, eu cantava no Coro Sinfônico Comunitário da UnB, com mais outras 200 ou 300 vozes, e falei de afinidades e gostos, etc. Percebi que ele não perguntara questões funcionais ou práticas; notei que minha resposta resvalava para longe daquilo que ele queria saber. Entendi que eu mesma não tinha a resposta. Fiz de conta que estava satisfeita com o que lhe falara, mesmo sem estar. Ele também prosseguiu com a aula. Mas a pergunta se colou à minha pele, e nunca mais despregou. Por que eu queria cantar?

Algum tempo depois, no intervalo entre a minha aula e a próxima, uma moça contava, animada, que no dia anterior, fazendo exercício de vocalize, na universidade, alcançara o 5º DÓ. Esse é o DÓ mais agudo no teclado do piano, e encontra-se na 5º oitava desde o primeiro DÓ mais grave. Alcançar tal nota com a voz exige rigor no treinamento, domínio técnico, e extensão vocal.

Confesso, ela conseguiu seu intento de me impressionar com o feito. Mas o Luiz permaneceu sereno, ouvindo o relato da aluna. Ao final, ele perguntou Sim, você alcançou o 5º DÓ, e fez o quê com ele? A pergunta interrompeu o entusiasmo dela, e o meu estado de admiração. Como assim? Ele explicou Ora, se você alcança uma nota difícil só por alcançar, não acontece nada. Para chegar a uma nota, é preciso fazer isso com alguma finalidade expressiva. O que você fez com o 5º DÓ? A moça não fizera mais do que exercitar-se.

Ele aproveitou para prosseguir: você não precisa ter uma grande extensão vocal. Isso não necessariamente ajuda você. Mas precisa conhecer bem a extensão vocal que você tem, e saber usá-la em seus projetos. Ou seja: tem que dominar os recursos que sua voz lhe propicia, mesmo com pouca extensão vocal. Isso é mais importante do que alcançar notas muito agudas e não saber o que fazer com elas. Depois ele citou, como exemplo, a pequena extensão vocal da Nara Leão, e sua capacidade expressiva. Claro, ele não estava desqualificando qualquer domínio técnico, nem o trabalho de cantoras e cantores que tivessem grandes extensões vocais. Mas ressaltava ser necessário não confundir o domínio técnico em si com capacidade expressiva, com autoconhecimento corporal e vocal. 

Hoje, tantos anos depois, quando me deparo com professores exibindo os quantitativos de suas produções nos certames de avaliação institucional, eu me pergunto o que eles têm feito com os 5ºs DÓs que têm alcançado em exercícios de repetição. Inquieto-me da mesma forma com os outros professores que sequer se dispõem a fazer quaisquer exercícios vocais, alegando quaisquer razões para a negativa.

Afinal, tomamos, todos, parte de uma espécie de coro em concerto. Nem todas as músicas cantadas requerem o uso do 5º DÓ. Por outra, é preciso que se ouçam as vozes uns dos outros, que se busquem pontos de afinação, harmonia entre as vozes, que se ajuste o andamento. Para isso, é preciso atenção à própria voz em relação às demais. E muitas vezes poderá parecer que a nossa voz se perdeu entre todas as demais. O que é um equívoco: ela integrou-se aos acordes, faz parte deles, dá corpo a eles. Eventualmente há solistas. Algumas vozes em destaque. Mas estas não têm vida se isoladas. Estas também estão em relação ao coro e aos instrumentos. Elas devem ter isso em conta.

Enquanto uns ostentam medalhas no peito: alcançou o 5º DÓ por 10 vezes! e outros desdenham, recusando-se aos vocalizes e outros exercícios da cantata, o coro desafina, o andamento desanda, faltam vozes, falta musicalidade...

Nem só produtivismo de um lado, nem preguiça, frouxidão de outro...

Eu, que tenho uma voz classificada como mezzo soprano, já cantei como tenorina e como contralto, vozes mais graves para timbres femininos. Durante algum tempo, no Coro Sinfônico, eu mais algumas mulheres integramos o grupo dos tenores exatamente para dar suporte às vozes masculinas em regiões que, para eles, eram mais agudas. Ali, onde as vozes deles perdiam fôlego, as nossas vozes ganhavam volume. Era o trabalho coletivo, colaborativo. 

Quando eu cantava entre os tenores, não exercitava as regiões mais agudas. Mais tarde, quando voltei a cantar na faixa mais central, recuperei as notas mais agudas, mas perdi as graves. Minha extensão vocal não é lá muito grande. Jamais alcançaria o 5º DÓ. Mas aprendi que posso cantar as canções de que gosto, que se aconchegam à minha voz, com sinceridade e sentimento. Principalmente, com conhecimento dos recursos de que disponho, para operar com eles, a partir deles.

Talvez hoje eu pudesse chegar um pouco mais próximo de uma resposta satisfatória à pergunta do Prof. Luiz: canto por que essa é uma das atividades que ajudam a viver, do mesmo modo que escrever poesias, fazer fotos, cultivar flores e afetos, aprender, ensinar, reinventar o mundo a cada dia.

Não, eu não quero estar entre os que alcançam o 5º DÓ várias vezes em exercícios vocais. Nem quero estar entre os professores que apresentam maiores quantitativos de produção qualificada da instituição a que pertenço. Tampouco quero estar entre os que têm produção medíocre. Quero poder cantar, de preferência no coletivo, exercitar a autocrítica e poder produzir conhecimento compartilhado, para continuar a caminhar pela estrada, rumo às utopias que vislumbro, em horizontes sempre moventes.





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