Corriam os primeiros anos da década de 1990, quando eu comecei a
fazer aulas de canto com o Prof. Luiz. Ele fora professor na Universidade de
Brasília. Mas, por incompatibilidade com uma série de elementos da cultura
universitária, exonerou-se e montou sua própria escola, numa pequena e
aconchegante sala instalada num centro comercial. Ali, recebia seus alunos,
muitos dos quais também alunos de música na UnB.
Já não me recordo como eu cheguei até ele. Eu já fizera
aulas de canto em outros lugares. O encontro com ele foi particularmente feliz,
e me propiciou aprendizagens que vão muito além do domínio vocal para o canto,
coisa que aliás ando precisando voltar a praticar.
No meu primeiro dia de aula, ele me perguntou, com a
simplicidade que lhe era peculiar: por que
você quer cantar? Eu lhe expliquei, prontamente, que fazia teatro, e muitas
vezes cantava em cena, além disso, eu cantava no Coro Sinfônico Comunitário da UnB, com mais outras 200 ou 300 vozes, e falei
de afinidades e gostos, etc. Percebi que ele não perguntara questões funcionais
ou práticas; notei que minha resposta resvalava para longe daquilo que ele queria saber.
Entendi que eu mesma não tinha a resposta. Fiz de conta que estava satisfeita
com o que lhe falara, mesmo sem estar. Ele também prosseguiu com a aula. Mas a
pergunta se colou à minha pele, e nunca mais despregou. Por que eu queria
cantar?
Algum tempo depois, no intervalo entre a minha aula e a próxima,
uma moça contava, animada, que no dia anterior, fazendo exercício de vocalize,
na universidade, alcançara o 5º DÓ. Esse é o DÓ mais agudo no teclado do piano,
e encontra-se na 5º oitava desde o primeiro DÓ mais grave. Alcançar tal nota
com a voz exige rigor no treinamento, domínio técnico, e extensão vocal.
Confesso, ela conseguiu seu intento de me impressionar com o
feito. Mas o Luiz permaneceu sereno, ouvindo o relato da aluna. Ao final, ele
perguntou Sim, você alcançou o 5º DÓ, e
fez o quê com ele? A pergunta interrompeu o entusiasmo dela, e o meu estado
de admiração. Como assim? Ele
explicou Ora, se você alcança uma nota
difícil só por alcançar, não acontece nada. Para chegar a uma nota, é preciso
fazer isso com alguma finalidade expressiva. O que você fez com o 5º DÓ? A
moça não fizera mais do que exercitar-se.
Ele aproveitou para prosseguir: você não precisa ter uma grande extensão vocal. Isso não
necessariamente ajuda você. Mas precisa conhecer bem a extensão vocal que você
tem, e saber usá-la em seus projetos. Ou seja: tem que dominar os recursos que
sua voz lhe propicia, mesmo com pouca extensão vocal. Isso é mais importante do
que alcançar notas muito agudas e não saber o que fazer com elas. Depois ele citou, como exemplo, a pequena extensão vocal da Nara Leão, e sua capacidade expressiva. Claro, ele não estava desqualificando qualquer domínio técnico, nem o trabalho de cantoras e cantores que tivessem grandes extensões vocais. Mas ressaltava ser necessário não confundir o domínio técnico em si com capacidade expressiva, com autoconhecimento corporal e vocal.
Hoje, tantos anos depois, quando me deparo com professores
exibindo os quantitativos de suas produções nos certames de avaliação
institucional, eu me pergunto o que eles têm feito com os 5ºs DÓs que têm
alcançado em exercícios de repetição. Inquieto-me da mesma forma com os outros
professores que sequer se dispõem a fazer quaisquer exercícios vocais, alegando
quaisquer razões para a negativa.
Afinal, tomamos, todos, parte de uma espécie de coro em
concerto. Nem todas as músicas cantadas requerem o uso do 5º DÓ. Por outra, é
preciso que se ouçam as vozes uns dos outros, que se busquem pontos de
afinação, harmonia entre as vozes, que se ajuste o andamento. Para isso, é
preciso atenção à própria voz em relação às demais. E muitas vezes poderá
parecer que a nossa voz se perdeu entre todas as demais. O que é um equívoco:
ela integrou-se aos acordes, faz parte deles, dá corpo a eles. Eventualmente há
solistas. Algumas vozes em destaque. Mas estas não têm vida se isoladas. Estas
também estão em relação ao coro e aos instrumentos. Elas devem ter isso em
conta.
Enquanto uns ostentam medalhas no peito: alcançou o 5º DÓ por 10 vezes! e outros desdenham,
recusando-se aos vocalizes e outros exercícios da cantata, o coro desafina, o
andamento desanda, faltam vozes, falta musicalidade...
Nem só produtivismo de um lado, nem preguiça, frouxidão de
outro...
Eu, que tenho uma voz classificada como mezzo soprano, já
cantei como tenorina e como contralto, vozes mais graves para timbres femininos. Durante algum tempo, no Coro Sinfônico, eu mais algumas mulheres integramos o grupo dos tenores exatamente para dar suporte às vozes masculinas em regiões que, para eles, eram mais agudas. Ali, onde as vozes deles perdiam fôlego, as nossas vozes ganhavam volume. Era o trabalho coletivo, colaborativo.
Quando eu cantava entre os tenores, não exercitava as regiões mais agudas. Mais tarde, quando voltei a cantar na faixa mais central, recuperei as notas mais agudas, mas perdi as graves. Minha extensão vocal não é lá muito grande. Jamais alcançaria o 5º DÓ. Mas aprendi que posso cantar as canções de que gosto, que se aconchegam à minha voz, com sinceridade e sentimento. Principalmente, com conhecimento dos recursos de que disponho, para operar com eles, a partir deles.
Quando eu cantava entre os tenores, não exercitava as regiões mais agudas. Mais tarde, quando voltei a cantar na faixa mais central, recuperei as notas mais agudas, mas perdi as graves. Minha extensão vocal não é lá muito grande. Jamais alcançaria o 5º DÓ. Mas aprendi que posso cantar as canções de que gosto, que se aconchegam à minha voz, com sinceridade e sentimento. Principalmente, com conhecimento dos recursos de que disponho, para operar com eles, a partir deles.
Talvez hoje eu pudesse chegar um pouco mais próximo de uma
resposta satisfatória à pergunta do Prof. Luiz: canto por que essa é uma das
atividades que ajudam a viver, do mesmo modo que escrever poesias, fazer fotos,
cultivar flores e afetos, aprender, ensinar, reinventar o mundo a cada dia.
Não, eu não quero estar entre os que alcançam o 5º DÓ várias
vezes em exercícios vocais. Nem quero estar entre os professores que apresentam
maiores quantitativos de produção qualificada da instituição a que pertenço. Tampouco quero estar entre os que têm produção medíocre. Quero poder
cantar, de preferência no coletivo, exercitar a autocrítica e poder produzir conhecimento
compartilhado, para continuar a caminhar pela estrada, rumo às utopias que
vislumbro, em horizontes sempre moventes.
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