domingo, 28 de setembro de 2014

Carta a Lutiere, Taísa e Gabriel


Desde pequena, fui dada a algumas esquisitices (quem não terá sido, afinal?). Uma delas está numa espécie de adiamento para adentrar situações muito desejadas, ou carregadas de afeto. À maneira daquelas pessoas que deixam a melhor parte da refeição para degustar ao final. Assim, podem prolongar a memória do sabor nas papilas.

Por exemplo, quando eu tinha 6 anos, e ganhei a boneca dos meus sonhos, demorei-me vários dias para pegá-la, admiti-la como minha, e supor a possibilidade de brincar com ela. Na verdade, a boneca estava muito além do que, em meus sonhos, eu fora capaz de imaginar. E isso me arrebatava. O casal que ma deu tinha a expectativa que eu me lançasse sobre o presente, abrisse a caixa, e saísse dançando com a boneca que tinha quase o meu tamanho. Penso que, no primeiro momento, tenham ficado frustrados ante o meu recuo. Eles não podiam perceber as alterações no meu batimento cardíaco, os sentidos à flor da pele, e a convulsão que se passava nos embates entre os sonhos, a imaginação e a visão do que se abria à minha frente, anunciado como "presente para mim". Passado o embate, cerca de um mês depois, eu já circulava pelos campos levando minha companheira em passeio.

Coisa parecida ocorreu, novamente, no começo deste mês de setembro, quando fui surpreendida por um encontro marcadamente especial na beleza e no afeto. Estar ao abrigo de Lutiere, Taísa e Gabriel, em Santa Maria, foi um privilégio. Lutiere e Taísa me perdoarão, mas o lugar de honra nesse espaço afetivo é do Gabriel, sem dúvidas. No dia da partida, Lutiere presenteou-me com uma embalagem dentro da qual, descreveu-me, havia dois desenhos assinados por ele: um retrato do Gabriel, para mim, e outro desenho para Carla, querida amiga em comum. A embalagem fora feita com tamanho cuidado, que se assemelhava a um casulo. Agradeci o acolhimento, o presente, e parti, trazendo o volume, sem saber muito ao certo como me portar com ele, certa de que ali pulsava sensibilidade.

Chegada à minha residência, acomodei o casulo entre objetos de valor, e adiei qualquer ação a ser feita em relação a ele. Algum tempo depois, justifiquei-me com a decisão de só abri-lo em companhia da Carla, conquanto seu conteúdo também se destinasse a ela. 

Quase um mês transcorrido, finalmente, rompi as cascas sobrepostas, para revelar o conteúdo daquela estrutura casular, ante os olhos ansiosos de Carla, que tomou posse do seu desenho, cujos traços ela já conhecia por meio de fotografia. E eu me comovi, mais uma vez, ante a visão das feições do meu pequeno amigo Gabriel, abraçado ao seu gatinho. Também ante a visão de traços ao mesmo tempo delicados e fortes, marcados e sutis, explodindo cores e texturas, latejantes. O artista e o pai, entrelaçados num só, transpiram em cada centímetro quadrado do desenho. E eu transbordo de gratidão e afeto sendo destinatária desse mimo.

Hoje pela manhã, fui despertada por revoadas barulhentas de maritacas. Manhã alegre, cheia de vida. Que o seu domingo seja assim, também.


Retrato de Gabriel (detalhe). Desenho de Lutiere Dalla Valle. 




Nenhum comentário:

Postar um comentário