No andar superior, a luz natural não entra no corredor
que se estende ao longo de todo o edifício, ligando as escadas localizadas nos
extremos. Com pé direito alto, há duas fileiras de sancas no teto, rasgos no
gesso, com lâmpadas fluorescentes que ficam acesas o dia todo.
Um pássaro desavisado, explorando seu território, senhor
das artes do voo, entrou no prédio pelo vão lateral, próximo às escadas,
alcançando a área do corredor. Sem encontrar o que lhe valesse a pena, decidiu
sair dali. Orientado por suas crenças, seguiu a luz: supunha que a luz o levasse ao espaço aberto. Voou para o alto, e entrou na última sanca do corredor, de onde
a lâmpada fluorescente oculta fazia jorrar luz. Ficou ali, sobressaltado com os sons
do lugar, os movimentos. Batia-se contra a parte superior da sanca. E pousava
novamente na borda, sempre perto da luz. A luz era sua segurança. Mas também
sua prisão. Melhor falando: sua crença na luz era sua prisão.
Algumas pessoas deram-se conta de sua presença. Alguns,
habituados a compartilhar fotos de animaizinhos qualificados como fofos, encantavam-se com o bichinho naquele espaço. “Olha o passarinho! Que lindinho!”. Outros questionavam
“Como ele vai sair?” Mas todos estavam muito ocupados para deter-se no
próprio percurso, compreender o trágico da situação, e buscar alguma solução.
Eu o encontrei já no segundo dia de sua saga. O segundo
dia, da escala humana, deve corresponder a alguns anos na escala de
passarinhos, imagino. Minha primeira providência foi desligar a luz da sanca. Imaginei
que ele pudesse ser provocado a buscar outra fonte de luz, e assim sair dali. Contrariando
minhas expectativas, na sombra ele acalmou-se, aninhou-se a um canto. Acho até que
dormitou, por ali. Corredor escuro, logo passava alguém, e acendia a luz. O pássaro
voltava à agitação. Depois da terceira ou quarta tentativa, percebi que minha
estratégia estava fadada ao fracasso.
No final do dia, o pássaro estava lá, agitado,
debatendo-se na extensão da sanca iluminada pela luz fluorescente. Pessoas passavam,
olhavam-no, faziam comentários de compaixão, e seguiam seus rumos. A falta de compreensão,
por parte do pássaro, sobre a contingência que o aprisionava, a crença que o
mantinha nos limites estreitos da sanca, a certeza do aprisionamento não percebido
como tal, tudo isto me comoveu, e me conectou ao pássaro. Pensei nas nossas próprias
crenças a nos impedir de compreender nossas condições, nossos aprisionamentos,
fontes de angústia e aflição. Fiquei ali, por algum tempo, acompanhando sua
movimentação. A fadiga ia tomando conta do corpo miúdo.
Lembrei-me de perguntar à moça que cuida da limpeza sobre
a existência de alguma vassoura para faxina do teto, com cabo mais longo. Ela compadeceu-se
do pássaro. Foi preciso amarrar dois cabos à vassoura, para alcançar,
precariamente, a área da sanca. O pássaro sentiu-se ameaçado, agitou-se ainda mais nervosamente, fugiu por trás da vassoura, passando rente à lâmpada. Cheguei
a pensar que a tentativa também resultaria em insucesso. Mas um estudante,
que também vinha observando a situação, começou a trabalhar com a vassoura. Apagamos
a luz. O pássaro saiu da sanca, para entrar na sanca vizinha.
O pássaro voava sempre para cima, e em direção à luz. Ele
acreditava que assim conseguiria sair. Suas crenças o aprisionavam. Era
preciso força-lo no sentido oposto às suas crenças, para retirá-lo dali. Se não
conseguíssemos, ele morreria. O rapaz considerou a possibilidade de machuca-lo, como forma de fazer
com que ele descesse. Pensei que talvez não fosse uma boa ideia. Um pássaro ferido precisa de cuidados para sobreviver. Sobretudo depois de ter passado por uma situação estressante. Mas qual a opção alternativa àquela?
O rapaz empunhou o longo cabo da vassoura com firmeza e
ternura, hábil como quem empina pipa. Foi determinado. O pássaro enredou-se na vassoura, saiu da
sanca, desequilibrou-se, entregou-se, veio ao chão. Antes que chegássemos até ele, alçou voo
numa diagonal, em direção ao final do prédio, onde o vão aberto ofereceu-lhe a
noite fresca, varada pelos cantos das cigarras, e pelas conversas dos
estudantes do terceiro turno.
À porta de saída do prédio, um cão sujo, sem dono, dormia
sobre o tapete tão encardido quanto seu próprio pelo, indiferente às conversas e movimentações em redor. Livre, talvez...
Quem, à minha revelia, usará da força para, contrariando minhas
crenças, me libertar de todas as sancas nas quais tenho me metido, e
permanecido, no decurso do tempo?
Belíssima crônica-foto-poema !... Parabéns!...
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