Precisava resolver duas questões na PF. Fiz o agendamento de
uma delas por meio do site. A outra, fiz a solicitação por telefone. Agendaram o
horário e o local, para onde me dirigi com um pouco de antecedência. Havia uma
fila, na recepção. Aguardei minha vez. Mesmo com horário agendado, preciso pegar
senha? A senhora vai fazer o quê? Expliquei. A moça disse A senhora precisa ir
naquele balcão, e mostrar os documentos necessários para aquele rapaz. Havia uma
segunda fila. Aguardei minha vez. O que a senhora vai fazer? Expliquei. Eu preciso
dos seus documentos, ele falou. Mostrei-lhe, todos. Ele reuniu, e me devolveu. Havia
certo poder no seu gesto. O rapazote gostava de exercê-lo. Entregou-me um papel quadradinho, pequeno, onde se
lia, escrito a mão: PF 15:55. Ainda está muito cedo. Quando for exatamente 15
horas e 55 minutos, a senhora volta naquele balcão para pegar a senha. Antes disso,
a senhora dá uma voltinha no shopping... Tinha um sorrizinho entre os lábios, enquanto pronunciava as instruções. O atendimento estava agendado para as
16h. Pensei, com meus botões, eu faço o que eu quiser com o tempo de espera! Mas agradeci. E saí dali. Fui a um terminal de autoatendimento bancário. Tentei caminhar
devagar. Retornei, faltando 15 minutos para as 15 horas e 55 minutos. Ainda estava
muito cedo. Coloquei-me a observar a movimentação labiríntica do
lugar. Um enxame de pessoas que entravam e saíam. Uma centena de guichês com
funcionários fazendo os mais diversos encaminhamentos: documentos pessoais,
multas, taxas, cobranças, quitações, polícia, bombeiro, fotografia digital,
seguro desemprego, emprego, papéis, papéis... Uns saíam preocupados. Outros mais perdidos do que quando entraram. Algumas pessoas saíam com um
punhado de documentos na mão. Tinham, nas feições, a expressão de alívio de
algum problema resolvido. Mas sairiam dali, e, por certo, logo encontrariam
outras questões para resolver.
O labirinto é assim: a gente se apruma num
corredor que parece claro e reto, mas por pouco tempo, logo já estamos perdidos
de novo.
Os que aguardavam, ficavam sentados, como numa igreja, de
olhos pregados em três letreiros eletrônicos com letras vermelhas que se deslocavam da direita para a esquerda. Os funcionários teimam em
chamar aquilo de os painéis. Ali, aparecem as abreviaturas dos lugares para onde cada um
pretende seguir, o número da senha, e o respectivo guichê disponível para o
atendimento. Todos, atentos, não podem despregar o olhar, pois basta uma
distração para perder a vez. No papelzinho da senha está escrito: a senha será descartada depois da terceira chamada não atendida.
Assim é o Estado, essa instituição da qual tomamos parte,
sem termos solicitado ingresso, e sem termos a opção de sair dele. Penso na atualidade da obra de Franz Kafka. Sinto vontade de reler O Processo. Sinto vontade é de ler O Processo
em voz alta, dando voltas por aquele lugar.
Lembro-me do meu horário. São 15 horas e 53 minutos. Sigo ao
balcão. Meio a contra-gosto, o rapaz gera a minha senha. Ainda não eram 15 horas e 55 minutos, conforme ele estabelecera. Teimosia, a minha! Provavelmente, a senha só seja gerada tão
próxima ao horário agendado para comprovar o pouco tempo de espera para o
atendimento nos dados estatísticos do governo. Leio o pequeno papel amarelo. Ali está impresso o código do que vou fazer, e o número 110. Integro-me
à massa que venera os 3 letreiros eletrônicos. Suas luzes vermelhas e o sinal
sonoro não repousam um segundo sequer. Passa algum tempo, e percebo que o
código da minha senha nunca é chamado. Estaria errada? Eu estaria venerando os letreiros errados? Mais algum tempo,
constato que já se passaram 10 minutos do meu horário agendado. Espero um pouco
mais, ainda, e então o tal código é chamado, seguido da senha de número 106. Isso
me informa que o atendimento está atrasado, e não há o que fazer, senão
esperar. Desisti de contar o tempo. Mas não posso desviar o olhar dos letreiros,
de onde os chamados jorram incessantemente. Enquanto isso, aguço os ouvidos para acompanhar as conversas à minha volta.
Um bom tempo depois, minha senha foi chamada. A policial que
me atendeu recomendou que eu trocasse minha carteira de identidade. Você está muito
novinha nela! Uma menina! Achei graça. Acho que envelheci... Perguntei aos meus botões se deveria me
sentir acabada, naquele momento. Talvez estivesse, mesmo. Mas ela foi gentil. Olhou
meus documentos, e mos devolveu, todos. Com um papel a mais. Era o protocolo para meu
retorno. Na sequência, outra policial me atendeu para a segunda questão. Foi gentil também.
Quando saí da área restrita, senti novamente o impacto da multidão de pessoas circulando
no hall central, e venerando os três letreiros eletrônicos.
Lembrei-me de Émile Durkheim. Para ele, entre o Estado e o
indivíduo social, é necessário haver várias instâncias que façam a mediação. Só assim
o indivíduo tem alguma chance de não sucumbir ao peso do Estado. As duas
policiais, de alguma forma, cumprem esse papel, lembrando, na sua forma de
atendimento, nossa humanidade. Mas é inevitável: o Estado ruge, eu posso ouvir,
todos ouvimos, enquanto nos batemos em seus labirintos, quase sempre impotentes e assustados,
por vezes até um pouco satisfeitos quando conseguimos regularizar algum documento, pagar
alguma dívida contraída à revelia, nos fazendo respeitar, cidadãos que somos,
ao menos por uma filigrana de tempo.
Saio dali. Para retornar na nova data marcada. Quando repetirei todos os rituais para a próxima senha, e
a devoção aos três letreiros de onde jorram incessantes chamamentos
por meio de códigos que só mesmo os iniciados sabem decifrar!
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