domingo, 23 de março de 2014

Estórias abensonhadas (Mia Couto) – fragmentos


Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gêmeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os bancos panos da outra margem. (p. 14)

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Toda a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é um fumo, leve de mais para se prender na vigente realidade. Toda a verdade aspira ser estória. Os factos sonham ser palavra, perfumes fugindo do mundo. Se verá neste caso que só na mentira do encantamento a verdade se casa à estória. O que aqui vou relatar se passou em terra sossegada, dessa que recebe mais domingos que dias de semana. (p. 47)

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– Quem está balançar: sou eu, é a cadeira ou é o mundo? (p. 67)

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Mas agora, no momento que lhe escrevo, nem mais me apetece explicação. Quero desraciocinar. Em cada dia não espero senão a noite, as brandas tempestades em que sou Joãotónio e Joanantónia, masculina e feminino, nos braços viris de minha esposa. Por enquanto, mano, ainda sou Joãotónio. Me vou despedindo, vagarinhoso, do meu verdadeiro nome. (p. 103)

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Não sou homem de igreja. Não creio e isso me dá uma tristeza. Porque, afinal, tenho em mim a religiosidade exigível a qualquer crente. Sou religioso sem religião. Sofro, afinal, a doença da poesia: sonho lugares em que nunca estive, acredito só no que não se pode provar. E, mesmo seu eu hoje rezasse, não saberia o que pedir a Deus. Esse é o meu medo: só os loucos não sabem o que pedir a Deus. Ou não se dará o caso de Deus ter perdido fé nos homens? Enfim, meu gosto de visitar as igrejas vem apenas da tranquilitude desse lugarinhos côncavos, cheios de sombras sossegadas. Lá eu sei respirar. Fora fica o mundo e suas desacudidas misérias. (p. 121)







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