Enquanto remava um demorado
regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o
tempo são irmãos gêmeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em
mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir
meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os bancos panos da outra margem. (p. 14)
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Toda a estória se quer
fingir verdade. Mas a palavra é um fumo, leve de mais para se prender na
vigente realidade. Toda a verdade aspira ser estória. Os factos sonham ser
palavra, perfumes fugindo do mundo. Se verá neste caso que só na mentira do
encantamento a verdade se casa à estória. O que aqui vou relatar se passou em
terra sossegada, dessa que recebe mais domingos que dias de semana. (p. 47)
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– Quem
está balançar: sou eu, é a cadeira ou é o mundo? (p.
67)
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Mas agora, no momento que
lhe escrevo, nem mais me apetece explicação. Quero desraciocinar. Em cada dia
não espero senão a noite, as brandas tempestades em que sou Joãotónio e Joanantónia,
masculina e feminino, nos braços viris de minha esposa. Por enquanto, mano,
ainda sou Joãotónio. Me vou despedindo, vagarinhoso, do meu verdadeiro nome.
(p. 103)
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Não sou homem de igreja. Não
creio e isso me dá uma tristeza. Porque, afinal, tenho em mim a religiosidade
exigível a qualquer crente. Sou religioso sem religião. Sofro, afinal, a doença
da poesia: sonho lugares em que nunca estive, acredito só no que não se pode
provar. E, mesmo seu eu hoje rezasse, não saberia o que pedir a Deus. Esse é o
meu medo: só os loucos não sabem o que pedir a Deus. Ou não se dará o caso de
Deus ter perdido fé nos homens? Enfim, meu gosto de visitar as igrejas vem
apenas da tranquilitude desse lugarinhos côncavos, cheios de sombras
sossegadas. Lá eu sei respirar. Fora fica o mundo e suas desacudidas misérias.
(p. 121)
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