quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Perfume de flores e a perda do olfato


 Para Rutinha, meu amor

Logo que minha mãe faleceu, há pouco mais de um ano, eram frequentes os episódios quando eu sentia cheiro de flores. Então eu perguntava a quem estivesse por perto se também sentia o perfume. Só eu sentia.

Fala-se que quando sentimos perfume de flores, sem que haja flores por perto, sua origem está na presença de anjos ou de boas almas a nos protegerem. Quando comentava o perfume que sentia, em geral as pessoas atribuíam à possível presença da minha mãe, a nos proteger. Era um alento para a falta que ela fazia. Eu acolhia a explicação com muito afeto, embora pairasse sempre alguma dúvida sobre a efetiva origem da sensação.

Aos poucos, os episódios com o perfume de flores foram ficando espaçados entre si, até que não me lembro quando teria ocorrido pela última vez. Parei de sentir o perfume de flores. E parei de sentir os demais odores: perdi o olfato. Demorei um pouco para me dar conta do que ocorrera.

Eu sempre tive o olfato muito aguçado. Preparando o almoço, por exemplo, eu me orientava muito mais pelo olfato para perceber o ponto de cozimento dos alimentos, do pelo tempo, ou pelo olhar. Eu sabia quando o arroz já estava pronto pelo cheiro. Nem olhava para decidir desligar o fogo a panela ou não. Do mesmo modo, eu sabia quando a dama-da-noite se abria, na varanda, mesmo sem ter avistado a planta nos últimos dias. Seu perfume eclodia pela casa, e eu sentia alegria ao percebê-lo.

Experimento agora uma sensação estranha. É como se o mundo à volta tenha ficado silencioso do ponto de vista dos odores.

Provavelmente não fosse a presença mágica de minha mãe à minha volta que tenha provocado a distorção da percepção olfativa, fazendo-me sentir perfume de flores. Suspiro aliviada. Se era uma distorção do olfato, agradeço ao organismo por ter trazido perfume de flores e não cheiros desagradáveis de material orgânico em decomposição.

Penso nas tantas sequelas deixadas pela pandemia provocada pela COVID, sequelas de ordem social, coletiva, de ordem individual, tanto comportamental quanto orgânica, somática. Embora eu tenha tomado todas as vacinas, tive dois episódios leves da virose. Uma das possibilidades é que a perda do olfato seja uma das sequelas da doença. Anosmia é o nome da perda total do olfato, com consequências também no paladar. Fantosmia qualifica a distorção olfativa, quando a pessoa sente um odor que não está presente. O perfume de flores que eu sentia, por exemplo.

Esse quadro requer atenção, implicando em questões de segurança. Quase sempre subestimamos a importância das informações olfativas com que lidamos correntemente.

Agora preciso aprender a me relacionar com um mundo do qual não consigo perceber os odores, embora seus odores estejam todos por aí, sinalizando, informando, alertando... Isso apresenta riscos, muitos, com os quais ainda vou descobrir como lidar.

 




domingo, 19 de janeiro de 2025

Duas Brasílias: uma, de Oscar Niemayer; outra, de Lúcio Costa


Em geral, estando fora da capital federal, quando se fala sobre Brasília, a imagem de que se lembra, de pronto, é a da Esplanada dos Ministérios, ou os palácios, monumentos que carimbaram a imagem da cidade e que abrigam a vida política na esfera federal. Essa é a imagem que se tem de Brasília desde fora de seus territórios. Mas essa não é exatamente a Brasília que eu vivenciei e vivencio na condição de habitante desde o final dos anos 1970. Os caminhos que percorro, as imagens da cidade que ficaram tatuadas em minha experiência não têm monumentos, negociações políticas em gabinetes, disputas em púlpitos de palácios. Eu até vivenciei muitas manifestações políticas populares, mas fora dos monumentos e dos gabinetes: ganhando as avenidas largas, os gramados verdes, o céu cor azul-oceano.

No quotidiano, a vida se desenvolve entre uma paisagem tomada por árvores, plantas de várias escalas de altura, frutíferas, ornamentais, todas habitadas por pássaros os mais diversos, desde os pequeninos beija-flores até curicacas e araras barulhentas. As pessoas se encontram nos comércios locais, de pequeno porte. Crianças brincam nos parques locais, enquanto as mães conversam sobre amenidades.

Lembro da primeira vez que vim a Brasília, em 1976, e fiquei espantada, pois não avistava os prédios, tal a densidade da vegetação. Cadê a cidade? Àquela altura, a cidade ainda não tinha tantos prédios, mas os que existiam já se ocultavam entre árvores e plantas diversas. Ainda hoje tenho a mesma sensação atravessando a cidade. E essa sensação vem tomada por encantamento.

Desde a minha chegada, a cidade cresceu muito, o fluxo de automóveis é muitas vezes um problema para o deslocamento, apesar das vias largas e do desenho que tem em vista facilitar a movimentação. Foram criadas muitas novas vias, fazendo geometrias nem sempre fáceis de serem decifradas. Mas para alguém que habita uma das superquadras do Plano Piloto, gerir a vida quotidiana não é algo complicado, ao contrário. Sempre há um comércio local, onde podem ser buscados itens de emergência, em segurança. O deslocamento de pedestres é mais seguro que na maioria das capitais e outras grandes cidades, onde caminhar a pé pode ser sinônimo de rally, ou aventura arriscada.

Voltando a Brasília, em se tratando de sua criação, o nome mais referido é o do arquiteto Oscar Niemayer. De fato ele assinou boa parte dos projetos dos monumentos da cidade, dos edifícios referenciais. As imagens dessas construções constituem uma espécie de conjunto de marcas referenciais. Contudo, não chegam a integrar a vida quotidiana dos habitantes da cidade. Ninguém vai à Catedral todos os dias, nem ao Congresso Nacional, ou à Praça dos Três Poderes, a menos que trabalhe ali, ou de passagem, ou levando alguém para passear.

Dou-me conta, então, que a Brasília de Oscar Niemayer é a dos monumentos, mais visíveis para quem não habita a cidade: para as matérias jornalísticas, para o turismo, para os grandes eventos.

Por outro lado, sinto-me acolhida de modo especial ao perceber que a cidade por mim habitada foi pensada por Lúcio Costa, o mestre Lúcio Costa, a respeito de quem pouco se fala, poucos sabem, sequer lembram quando o assunto é Brasília. É dele o desenho, o plano urbanístico. É dele a concepção do Plano Piloto em quatro escalas: a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica. 

Ou seja, Niemayer assinou as obras de apenas uma dessas escalas, a monumental. As demais foram assinadas pelo discreto e genial urbanista Lúcio Costa, e asseguram a qualidade de vida de quem vive numa cidade pensada tendo em vista a melhor gestão do quotidiano.

Quando Brasília foi elevada à condição de Patrimônio Cultural da Humanidade, pela UNESCO, o que se registrou foi a articulação dessas escalas. Vamos a elas:

Escala Monumental – localizada ao longo do Eixo Monumental, concentra as principais atividades administrativas e políticas da unidade federativa e nacionais. Inclui a Praça dos Três Poderes, o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional, a Esplanada dos Ministérios, o Palácio Itamaraty, a Catedral, o Teatro Nacional e o Museu Nacional da República.

Escala Residencial – localiza-se ao longo do Eixão (oficialmente, Eixo Rodoviário), organizada nas chamadas Unidades de Vizinhança, cada qual formada por um conjunto de quatro superquadras. As superquadras, além dos prédios residenciais, incluem escolas, clubes, bibliotecas, igrejas, comércio local, dentre outros.

Escala Gregária – situa-se no cruzamento do Eixo Monumental com o Eixão. Ali estão vários setores, como o bancário, o hoteleiro, o comercial e o de diversões. No ponto zero do cruzamento, encontra-se a rodoviária urbana, de onde parte boa parte dos ônibus urbanos e se encontra a estação final do metrô.

Escala Bucólica – está presente nas outras três escalas, formada por áreas livres e arborizadas. Ela confere à capital federal o caráter de cidade-parque.

Caminho entre árvores e pássaros, grata a Lucio Costa por ter pensado uma cidade com essas feições. É essa a cidade que habito, não a cidade em sua escala monumental.