Pássaros feridos
Eu fazia regularmente o trajeto entre Goiânia e Brasília de
ônibus. Nas idas e vindas, conheci pessoas, ouvi histórias, passei por dissabores...
Numa das viagens de Brasília para Goiânia, sentei-me ao
lado de uma senhorinha bem idosa, que conversou animadamente comigo durante
quase todo o percurso. Soube que ela morava sozinha, que as filhas iam
diariamente vê-la. Que às vezes não era diariamente, mas estavam sempre por lá.
Que gostava de ler. Que quando precisava sair, tinha um taxista que se tornara
seu amigo... Quando estávamos quase chegando, ela ficou menos falante. Disse que a filha ou o
genro estariam esperando por ela. Mas ao desembarcar, não os encontrou. Então me
disse que precisava ir ao sanitário. Era um pouco longe de onde estávamos. Fui conduzindo
suas duas malas e tentando ajuda-la na rampa longa que precisávamos descer
antes de tomar o corredor ao final do qual estava o sanitário feminino. Ela entrou
e eu fiquei, do lado de fora, cuidando da bagagem. O tempo passou. Sua demora
já me despertava preocupação. Entrei levando as duas malas dela e minha mochila. Ela
se olhava no espelho, tentando arrumar um casaco amarrado à cintura. Perguntou-me
se aparecia alguma mancha por trás, em sua calça comprida. Observei com
cuidado, não aparecia. Então ela me segredou que não conseguira controlar o
intestino, e estava tentando disfarçar o pequeno desastre que acontecera. Estava
tudo bem, lhe disse. E voltamos, devagar, para o ponto do desembarque. A filha
com o genro ainda se demoraram um pouco para chegar. Nesse ínterim, ela anotou
meu telefone. Quando ela, finalmente, encontrou-se entre os seus, nos
despedimos. Alguns dias depois, ela me ligou, queria me fazer uma visita. Entre
minhas atividades na universidade, aguardei por ela em casa, no meio da tarde
de algum dia da semana. Ela chegou pontualmente, trazida pelo amigo taxista,
que a aguardou. Veio elegante, sorridente. Estava feliz por me reencontrar. Eu também
fiquei feliz por vê-la. Trouxe um pequeno pacote, que me entregou. Era um
livro. Pássaros Feridos. Abri. Na primeira página, havia uma dedicatória da
filha para ela, em celebração a uma data de aniversário de quase 10 anos atrás.
Disse-lhe que eu não poderia receber o livro, pois era um presente que ela recebera da filha. Ela estava determinada: trouxera para mim, não o levaria de volta. A filha
não daria pela falta do livro, nem perceberia. Ela tinha gostado muito e tinha
certeza de que eu também iria gostar da leitura. Contou-me um pouco sobre o
livro, falou-me um pouco sobre sua vida de idosa que vivia sozinha, perguntou um pouco sobre mim, e se
foi.
Não me lembro mais do seu nome. Na dedicatória, a
filha, que se chama Laura, refere-se a ela apenas como mãe, sem nomeá-la.
Maravilhoso, Alice. Adorei a balconista! 👏👏👏
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