Já há alguns dias fui assistir ao filme Bacurau. A sala de
cinema estava cheia, e eu me reuni às milhares de pessoas que tem acorrido às
sessões. Levava comigo a expectativa de gostar, e muito, do filme. Acho que
ando precisando, ando desejando ver e ouvir narrativas que me arrebatem, ao
mesmo tempo em que me ajudem a pensar sobre o que temos vivido nestes tempos
estranhos. Tempos com cara de esfinge. Sinto-me engolida pela esfinge, mais do que capaz de
decifrar qualquer enigma. Quem sabe Bacurau pudesse me dar alguma pista?...
No decurso da sessão, tive a sensação física de ser
empurrada para fora da narrativa. A cada nova sequência, a cada novo contexto, deparava-me
com elementos que, em lugar de me envolver, me empurravam de volta para a sala
de cinema, para o desconforto da poltrona. Então eu me esforçava para voltar à
narrativa. Eu queria, mesmo, mergulhar nela.
Noto que esse movimento de volta à sala de cinema, de saída da
condição de imersão na narrativa em nada tem a ver com o estranhamento reivindicado
por Bertold Brecht. Tratava-se, sim, de uma espécie de contra-fluxo que me
empurrava para fora da correnteza, embora eu me esforçasse por seguir o fluxo.
Brecht reivindica, para o teatro, não a função catártica, mas o estranhamento capaz de nos fazer pensar. É preciso lembrar que se trata de uma encenação, e é preciso discuti-la. A função catártica não necessariamente resulta num processo reflexivo, mas numa espécie de purgação do que faz mal, dos excessos. Essa purgação minimiza, mesmo que provisoriamente, o mal estar. (Peço perdão pelo modo reducionista com que discorro sobre catarse...).
No caso de Bacurau, suspeito de uma experiência catártica vivida pela maioria das pessoas. Uma catarse da qual eu é que não consigo tomar parte... Ao final da sessão, uma pessoa muito querida veio ao meu encontro, profundamente impactada pelo filme. Disse-me estar sem palavras para descrever a experiência. Buscava em mim ecos de sua catarse. Fiz um esforço, mas não consegui corresponder. Senti-me incompleta. Era como se eu tivesse sorvido da mesma bebida que ela, contudo sem experimentar o mesmo efeito. Saí da sessão um tanto frustrada, querendo entender o que se passava.
Recorrentemente, todos se referiam ao filme como uma
experiencia impactante. Impacto do qual não fui destinatária. Por que?
Meu primeiro impulso foi tentar compreender o que faltava ao
filme. Há várias lacunas, fios soltos na narrativa, figuras incompletas. Elementos que não têm continuidade. Argumentos que talvez não se sustentem. Mas nada disso justificaria minha falta de conexão com o filme. Li algumas críticas de pessoas que não gostaram do trabalho. Seus argumentos
pareciam fazer sentido, mas, ao fim e ao cabo, não chegavam ao ponto da minha
frustração. Do mesmo modo, os argumentos de críticos que gostaram do filme
faziam sentido, mas igualmente não me convenciam de modo efetivo.
Até que ouvi, de outra pessoa muito querida, que o diretor sabia
exatamente para quem produziu o filme, seu endereçamento e, portanto, seu
discurso/narrativa tinham uma coesão interna que atendia a esse projeto. Um tal
argumento modificou minha percepção do filme, abrindo-me um pouco mais para
questões às quais eu me mantivera mais refratária. Ainda e assim, havia um oco,
uma vereda entre eu e o filme onde eu não me encontrava.
Quando, finalmente, retomei a ideia dos estrangeiros participando
da caça aos habitantes de Bacurau, inimigos de morte, caí em mim, na minha
frustração, na minha dor. Não, a metáfora criada em Bacurau não aborda as
circunstâncias que fazem brotar a maior dor, neste momento: os inimigos capazes
de decepar, de assassinar os sonhos, a dignidade, a empatia não são
estrangeiros, não vieram de fora, não falam inglês. Ao contrário: convivem comigo, compartilham comigo os quotidianos, são os meus vizinhos, são pessoas de meus afetos, são
pessoas que têm o meu DNA.
Recosto-me, então, na cadeira, e me volta à memória a figura do
rinoceronte, construída por Ionesco... O primeiro rinoceronte passa pela rua, em fúria, desumanizado. Depois dele, outras pessoas também vão se
tornando rinocerontes... inclusive pessoas muito próximas a mim... e eu estou ali, à mesa do café, conversando sobre política, arte, ciência, problemas sociais... As pessoas
que me são caras, aos poucos, se tornam rinocerontes... eu eu ali, conversando, à mesa do café...
O texto de Ionesco me desconcerta, ainda hoje, embora tenha sido escrito há mais de 50 anos. Ele me empurra para o lugar da pergunta sobre mim mesma, no contexto no qual me encontro. Ele me faz pensar que pode chegar o momento quando eu também queira me tornar rinoceronte... talvez já não
consiga... se assim, o que poderá acontecer?
Respiro fundo. Não sei. Nada sei...
Aos poucos, vou conseguindo entrar no fluxo de Bacurau, no passo da compreensão daquilo que, nele, me empurra para fora de seu fluxo. Pretendo vê-lo novamente. Talvez consiga fazê-lo, antes que me transforme em rinoceronte...
Aos poucos, vou conseguindo entrar no fluxo de Bacurau, no passo da compreensão daquilo que, nele, me empurra para fora de seu fluxo. Pretendo vê-lo novamente. Talvez consiga fazê-lo, antes que me transforme em rinoceronte...
Sugestões:
O Rinoceronte pode ser lido, integralmente, aqui.
Um ensaio sobre o texto de Ionesco pode ser lido aqui
Uma crítica sobre Bacurau que pode ser lida aqui
Obrigada por este texto, querida!
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