domingo, 18 de dezembro de 2016

A mulher sem palavra

p/ Carol

Carolina inicia o projeto de um (des)dicionário colaborativo. Nesse processo, convida pessoas a elegerem um verbete como inspiração, com o qual produzirão uma narrativa. Informada sobre os escritos de minha mãe, fez a provocação: pede a ela para escrever sobre um verbete?

Expliquei a minha mãe, e perguntei se ela gostaria de escrever alguma coisa sobre um verbete que ela mesma poderia escolher. O que é um verbete? Falei que era uma palavra a integrar o dicionário. Ela disse, então, que poderia escolher o verbete palavra. Posso escrever alguma coisa sobre a palavra? Rimos. Pode, sim!

Com a saúde fragilizada, depois de uma internação hospitalar longa, no início de 2016, ela interrompeu a rotina de escrever, como fazia antes. As palavras começam a lhe escapar... Com uma deficiência respiratória significativa, tem que escolher entre escrever ou respirar... Coisa estranha, essa apneia que ela tem. Respira pouco, curto. E quando se concentra para fazer alguma coisa, piora tudo: ela para de respirar. Vai daí que o coração trabalha forçado há quanto tempo, e já vai fraquejando também. Tem, ainda, um barulhão na cabeça. E a memória, também, começa a falhar mais amiúde. Ando tão esquecida, minha filha, reclama. E anda mesmo. Por isso, imaginei que logo ela se esquecesse da encomenda, e acabasse não produzindo a tal escrita sobre a palavra... Por isso, também, passei a insistir, toda vez que falo com ela.

Hoje, pela manhã, não foi diferente. 

– Já fez o meu pedido? 
– O que você me pediu, mesmo? 
– A senhora disse que ia escrever alguma coisa sobre a palavra... 
– Ah... Tinha me esquecido com-ple-ta-men-te! 
– Eu sabia que a senhora tinha esquecido. 
– Está vendo, como eu sou uma mulher sem palavra?




Um comentário:

  1. Boniteza. O que dizer mais?
    E que a palavra regue a vida. E que a palavra respire a vida. Abraços nas Alices e nas Carolinas.

    ResponderExcluir