sábado, 23 de maio de 2015

Onde pego o ônibus para o não-lugar?


Nas discussões sobre territórios e fronteiras, tão recorrentes hoje em dia, sempre comparece a noção de não-lugar, proposta por Marc Augé no livro Non-lieux: Introduction á une anthropologie de la surmodernité, de 1992. Lembro-me de um projeto de mestrado, no início dos anos 2000, cujo trabalho final foi uma instalação num quarto de hotel. Versava sobre um não-lugar.

Apesar de ter lido e relido o livro do Augé, nunca cheguei a ficar convencida a respeito de sua proposição. Mas me demorei um pouco para situar e compreender meu desconforto. Vejamos, então.

Se a supermodernidade é caracterizada pelo excesso, pela superabundância espacial e individualização das referências, o que resulta em transformações das categorias de tempo, espaço e indivíduo, para Augé os não-lugares opõem-se à noção de lugar de pertencimento, que integra as relações identitárias dos sujeitos. Os não-lugares descortinam um mundo provisório e efêmero, comprometido com o transitório e com a solidão, e marcado pelo hiper em todas as suas dimensões: nos fluxos, nos signos, nos sujeitos, no desenraizamento.

A demarcação conceitual parece ser posta de modo a não deixar dúvidas. Por que, então, permanece meu desconforto em relação à definição?

Ora, o desconforto resulta da natureza conceitual que não supõe o lugar de quem pronuncia o conceito. Se o não-lugar de Augé é definido pelo não pertencimento, pelo não estabelecimento de relações identitárias com os sujeitos, é preciso definir quem sejam esses sujeitos. Ou melhor, esses não-sujeitos. E, dessa forma, o não-lugar não pode ser definido per si, como uma natureza própria, mas a partir de quem o defina enquanto tal.

Assim, ao definir algum espaço como não-lugar, o sujeito que pronuncia a definição fala mais de si mesmo em relação ao espaço em questão, do que propriamente desse espaço. Explico-me melhor: se eu defino uma rodoviária como um não-lugar, eu me revelo como alguém que usa a rodoviária de passagem – se é que eu ouse usá-la! Ou se eu defino um hotel como um não-lugar, declaro-me desde a condição de pagante de diárias do hotel para usufruir dos serviços por ele prestados, de modo provisório, efêmero, sem vínculos mais profundos.

Um divã do psicanalista, assim, seria um não-lugar para o psicanalisando que paga pela sessão, pelo direito de nele se recostar, provisoriamente, enquanto desfia suas autonarrativas...

Mas a mesma rodoviária não será vista como um não-lugar pelo grupo de meninos e meninas em situação de risco, que encontram ali um ambiente propício para ocupar o status de sua casa: o lugar, o lar, o aconchego, vínculos, pertencimento. Meninos e meninas em situação de risco moradores da rodoviária do Plano Piloto em Brasília lhe conhecem todos os recantos, becos, vãos, com intimidade e afeto. Fazem dela sua residência no mundo. Seu lugar.

Do mesmo modo, ao hotel acorre, diariamente, o garçon que trabalha no seu restaurante. Sabe como lidar com os hóspedes, conhece os ritmos da casa, da rua, os humores do patrão. Tem, ali, o espaço de trabalho e a fonte de renda com a qual mantém a família, educa os filhos. É seu lugar. No mesmo hotel, a camareira percorre os corredores de que não é proprietária, mas que recebem seu zelo diariamente, e encontra neles sua fonte de sustento, seu lugar de atuação profissional.

Tampouco o psicanalista tem, em seu consultório, um não-lugar...

Aos poucos, compreendo que certos conceitos são forjados desde o lugar do intelectual que se limita a certos trilhos na malha das relações sociais, sem ter em conta que tais conceitos não são suficientes, tampouco satisfatórios, se a entrada na malha das relações sociais se der por outros trilhos, outros pontos de vista, outras modalidades de relação e interação. 

No entanto, é preciso admitir o quão arriscado parece ser abrir mão de certas seguranças, para perceber que o mundo tem outras visagens, feições, além daquelas que insistimos em descrever desde nossos castelos de cristal, intelectuais que somos, a repetir conceitos que, já está decidido, nos satisfazem.

É preciso sair do lugar, e sair dos modos recorrentes de operar, para realizar o esforço de compreender talvez a mesma coisa mas desde outro ponto de vista, de outro lugar: esse lugar ao qual talvez eu não pertença, mas pertence a outrem, e é desde a sua perspectiva que me forço a ver esse lugar.

Assim, aos poucos compreendo meu desconforto, e sorrio, tomada pela convicção de que não, não há não-lugares.








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