Nas discussões sobre territórios e fronteiras, tão
recorrentes hoje em dia, sempre comparece a noção de não-lugar, proposta por
Marc Augé no livro Non-lieux:
Introduction á une anthropologie de la surmodernité, de 1992. Lembro-me
de um projeto de mestrado, no início dos anos 2000, cujo trabalho final foi
uma instalação num quarto de hotel. Versava sobre um não-lugar.
Apesar de ter lido e relido o livro do Augé, nunca cheguei a ficar convencida a respeito de sua proposição. Mas me demorei um pouco para situar
e compreender meu desconforto. Vejamos, então.
Se a supermodernidade é caracterizada pelo excesso, pela superabundância
espacial e individualização das referências, o que resulta em transformações
das categorias de tempo, espaço e indivíduo, para Augé os não-lugares opõem-se
à noção de lugar de pertencimento, que integra as relações identitárias dos
sujeitos. Os não-lugares descortinam um mundo provisório e efêmero,
comprometido com o transitório e com a solidão, e marcado pelo hiper em todas
as suas dimensões: nos fluxos, nos signos, nos sujeitos, no desenraizamento.
A demarcação conceitual parece ser posta de modo a não deixar dúvidas. Por que,
então, permanece meu desconforto em relação à definição?
Ora, o desconforto resulta da
natureza conceitual que não supõe o lugar de quem pronuncia o conceito. Se o não-lugar de Augé é
definido pelo não pertencimento, pelo não estabelecimento de relações
identitárias com os sujeitos, é preciso definir quem sejam esses sujeitos. Ou melhor,
esses não-sujeitos. E, dessa forma, o não-lugar não pode ser definido per si, como uma natureza própria, mas a
partir de quem o defina enquanto tal.
Assim, ao definir algum espaço como não-lugar, o sujeito que
pronuncia a definição fala mais de si mesmo em relação ao espaço em questão, do
que propriamente desse espaço. Explico-me melhor: se eu defino uma rodoviária
como um não-lugar, eu me revelo como alguém que usa a rodoviária de passagem – se é que eu ouse usá-la! Ou se eu defino um hotel como um não-lugar, declaro-me
desde a condição de pagante de diárias do hotel para usufruir dos serviços por
ele prestados, de modo provisório, efêmero, sem vínculos mais profundos.
Mas a mesma rodoviária não será vista como um não-lugar pelo
grupo de meninos e meninas em situação de risco, que encontram ali um ambiente
propício para ocupar o status de sua casa: o lugar, o lar, o aconchego, vínculos,
pertencimento. Meninos e meninas em situação de risco moradores da rodoviária
do Plano Piloto em Brasília lhe conhecem todos os recantos, becos, vãos, com
intimidade e afeto. Fazem dela sua residência no mundo. Seu lugar.
Do mesmo modo, ao hotel acorre, diariamente, o garçon que
trabalha no seu restaurante. Sabe como lidar com os hóspedes, conhece os ritmos
da casa, da rua, os humores do patrão. Tem, ali, o espaço de trabalho e a fonte
de renda com a qual mantém a família, educa os filhos. É seu lugar. No mesmo
hotel, a camareira percorre os corredores de que não é proprietária, mas que
recebem seu zelo diariamente, e encontra neles sua fonte de sustento, seu lugar de atuação profissional.
Tampouco o psicanalista tem, em seu consultório, um não-lugar...
Aos poucos, compreendo que certos conceitos são forjados
desde o lugar do intelectual que se limita a certos trilhos na malha das
relações sociais, sem ter em conta que tais conceitos não são suficientes, tampouco satisfatórios, se a entrada na malha das relações sociais se der por
outros trilhos, outros pontos de vista, outras modalidades de relação e interação.
No
entanto, é preciso admitir o quão arriscado parece ser abrir mão de certas seguranças, para perceber que o mundo
tem outras visagens, feições, além daquelas que insistimos em descrever desde
nossos castelos de cristal, intelectuais que somos, a repetir conceitos que, já
está decidido, nos satisfazem.
É preciso
sair do lugar, e sair dos modos recorrentes de operar, para realizar o esforço
de compreender talvez a mesma coisa mas desde outro ponto de vista, de outro
lugar: esse lugar ao qual talvez eu não pertença, mas pertence a outrem, e é
desde a sua perspectiva que me forço a ver esse lugar.
Assim, aos poucos compreendo meu desconforto, e sorrio,
tomada pela convicção de que não, não há não-lugares.
Nenhum comentário:
Postar um comentário