domingo, 15 de junho de 2014

Deixem as ostras em paz!


 
Dando seguimento às reflexões sobre as relações entre humanos e outros animais, e ao meu pouco conforto com o que chamei de estilo cut cut que prevalece como tendência nessas relações, trago à pauta o processo de atribuição de um sentido humano ao comportamento animal. O que quero trazer aqui, é uma situação em que um aspecto da vida animal é tomado como argumento para conselhos de autoajuda, em livro de autoajuda, altamente lucrativo. (Os direitos dos animais? Do que você está falando, mesmo? Ah, sim, esse é já outro assunto...)



Há algum tempo, chegou-me às mãos um livro, cujo título me deixou inquieta. Trata-se de uma coletânea de pequenos ensaios na forma de aconselhamentos, dos quais um empresta seu título ao livro como um todo. O título pode ser considerado forte, produzindo resultado para chamar convocar potenciais leitores à leitura. É sucesso de vendas. Anuncia, na capa, que ostra feliz não faz pérolas. Ao lê-lo, observei, ali, alguns elementos que me soavam mal. Mas eu não consegui identificá-los prontamente. Pareceu-me, de saída, uma apologia à infelicidade. Algo como: para fazer alguma coisa interessante, não seja feliz, melhor, impinja-se dor, seja infeliz! Mas também me assaltava outra questão: a pérola é interessante para quem? Para o joalheiro? Para a dondoca que usa joias com pérolas? E para a ostra, o que lhe parece?



Vamos por partes. Primeiramente, iniciemos por uma breve recordação de nossas aulas de biologia básica, para repetir um tema que é domínio de todos: a ostra tem um corpo mole, frágil, e vive dentro da concha, fechada, dura, cálcio puro, que a protege. Quando algum corpo estranho invade esse espaço interno, causando lesão ao corpo da ostra, ela produz nácar para envolver e neutralizar esse estranho. O nácar envolvendo a causa da lesão dá forma à pérola.



O problema é que, ao conseguir resolver o problema que ameaça sua integridade física, a ostra gera outro problema, que provoca a sua própria e definitiva morte, bem como a morte de muitas outras ostras que não tiveram que produzir o nácar para dirimir a ação de qualquer invasor. Explicando melhor, na caça às pérolas, muitos pescadores recolhem ostras, indiferenciadamente, e as matam, abrindo a concha, para só então saber se são portadoras de pérolas ou não... No caso de criadouros de ostras para a produção de pérolas, elas não são mortas: são abertas para a retirada da pérola e a inserção de outro invasor, para que a ostra, sobrevivente, produza mais pérolas para alimentar o mercado de joias...  Ou seja... para bom entendedor, pingo é letra...



Ainda sobre a função das pérolas para a saúde das ostras, é inevitável pensar no funcionamento do nosso próprio corpo. Por exemplo, entre os inúmeros casos de câncer, que se multiplicam no cenário contemporâneo, há alguns tipos de tumores que são encapsulados pelo tecido conjuntivo. Assim, esses tumores (estranhamente chamados de benignos...) não invadem os tecidos próximos. Eles ficam ali, latentes, aprisionados. Enquistados, podem até se expandir e exercer pressão à sua volta, mas não conseguem se disseminar pelo corpo. O tratamento é quase sempre melhor sucedido em relação aos outros tipos de tumores não encapsulados, pois os procedimentos cirúrgicos conseguem retirá-los em sua totalidade. Poderíamos pensar em pérolas humanas? A que designer interessaria produzir joias com elas?



Finalmente, trazendo a questão à dimensão específica do comportamento humano, por que haveríamos de fazer a apologia da dor, em favor da produção de pérolas, numa metáfora tosca que coloca as pérolas no lugar de tudo quanto seria nobre e elevado: gestos de superação, poesia, arte, beleza? Havemos de aprender a lidar com nossas dores, sim. E com nossas frustrações e impotências. Mas também com nossas alegrias, nosso prazer, nossa satisfação, nossa saúde! E, de tudo isso, viver poesia, do modo como tenhamos condições, com a matéria de que dispusermos. Com uma pitada de loucura pois, como muito bem nos advertiu o poeta de muitos eus, Fernando Pessoa, "sem a loucura, que é o homem mais que a besta sadia, cadáver adiado que procria?"



Não vou citar o autor do tal livro, especificamente, pois a expressão “ostra feliz não faz pérolas” é recorrente entre as pessoas, e integra o repertório daqueles que se disponham a consolar gentes entristecidas por alguma dor intensa de que sejam acometidas. Pessoalmente, prefiro a outra pérola (com o perdão do trocadilho): "calma, não há bem que sempre dure, nem há mal que nunca acabe..."



Não deixando de ter em consideração (a mais alta delas) a boa intenção de gestos solidários signatários de tais sentenças, ainda e assim, não posso me negar ao convite (não menos solidário): vamos lá, minha gente, deixem as ostras em paz!













Nenhum comentário:

Postar um comentário